Comerciantes do Mercado de Carnaxide sustentam que os seus produtos são de qualidade premium. Têm conseguido resistir graças ao reconhecimento dos clientes pelo humanismo no atendimento e à qualidade ímpar daquilo que é vendido nas bancas.
Numa altura em que o consumismo frenético e o comodismo tomaram conta da forma como as compras do dia a dia são feitas, o comércio tradicional continua a ser uma “ilha” na arte do bem atender, onde impera o atendimento personalizado e a manutenção de uma qualidade superior dos produtos vendidos ao público.
Fomos ouvir os comerciantes que resistem em manter os seus negócios abertos no Mercado de Carnaxide. Há uma unanimidade em torno da ideia de que a qualidade dos produtos vendidos nestes espaços de comércio local “é incomparavelmente superior” àquilo que é comercializado pelas grandes cadeias de retalho.
O “sonho” da reforma
Albertina Lopes passou mais de metade da sua vida a atender numa banca de fruta do Mercado de Carnaxide. E assume que já só imagina o dia em que fechar a porta e, finalmente, possa ter “o vencimento fixo” da reforma. São já trinta e nove anos de trabalho ininterrupto à frente da única banca de frutas e legumes que vai resistindo à erosão do tempo e da falta de uma clientela assídua “como aquela que havia antigamente”.
A comerciante diz-se “muito cansada” e que já poucas forças lhe restam para continuar a “batalhar” contra o ciclo negativo que se abateu sobre o comércio tradicional.
Aos 67 anos assume que os clientes, apesar de ainda ter alguns fiéis e que não trocam os seus produtos por nada deste mundo, têm vindo a perder-se como um punhado de areia comprimido numa mão num dia ventoso.
A comerciante diz-se triste, porque, na realidade, a qualidade das frutas e legumes vendidos na sua banca “já não atrai tanta gente” porque o consumidor prefere a “comodidade de fazer as compras num hipermercado” e também “procura os preços mais baixos”, sabendo, ainda assim, que “está a comprar produtos que nada têm a ver com aquilo que eu vendo”, que são adquiridos através das políticas agressivas praticadas pelos grandes retalhistas.
Albertina já não acredita em milagres. As duas filhas estão “estabelecidas” na vida, uma professora e uma engenheira, e nem querem ouvir falar em continuar com o negócio, mas a comerciante, apesar do desânimo, continua a encontrar formas de remar contra a maré. Em alguns dias, fecha a sua banca mais tarde “para aproveitar” a chegada das pessoas vindas do trabalho.
“Ainda tenho alguns clientes que valorizam a nossa qualidade, pelo facto de termos muitos produtos que provêm de agricultores tradicionais”. E é para continuar a servir esses clientes que Albertina Lopes vai prolongando e adiando “meter os papéis para a reforma”.
“O melhor que vem do mar”
O pescado da banca de Maria de Lurdes Cunha repousa sobre uma camada de gelo à espera de ser levado para casa pelos clientes habituais. Apesar da incerteza dos dias, Maria de Lurdes mantém o eterno sorriso como a sua imagem de marca pessoal. Tristezas não pagam contas, “nem atraem clientes”, confessa. O Mercado de Carnaxide, onde já trabalha há 38 anos, já teve melhores dias, segundo nos conta, E haverá momentos em que parece “um mercado fantasma”, quer pela falta de clientes, quer pela debandada de comerciantes que, antes, lá trabalhavam.
Maria de Lurdes, contudo, não atribui culpas a nada nem a ninguém em particular. São “apenas” os resultados dos novos hábitos de consumo, principalmente dos mais jovens. “O pessoal jovem é um pouco comodista. Não estão para vir aqui comprar peixe e, depois, terem de ir a outro sítio comprar o resto das compras. Habituaram-se a esse modo de vida e vai sendo difícil convencê-los de que vale a pena levar produtos realmente frescos e de muito melhor qualidade”.
Por outro lado, a subida das taxas de juros, a pandemia e a guerra da Ucrânia, diz Maria de Lurdes, ceifaram o poder aquisitivo “de muitas pessoas” que antes compravam na sua banca e que, no momento, já pensam duas vezes antes de levar para casa peixe “de muito melhor qualidade do que aquilo que se encontra nas grandes superfícies”.
Ainda assim, a “frescura e qualidade” do pescado vendido por Maria de Lurdes continua a atrair uma “clientela fiel”, entre os quais se encontram “alguns restaurantes” de Carnaxide e de outras partes do concelho de Oeiras, que não prescindem de servir à mesa “o melhor que vem do mar”.
Frescura de “outro nível”
Lúcia Carvalho trabalha numa banca de peixe que está isolada ao fundo do mercado. Tudo o resto, em volta da sua banca, desapareceu com o passar do tempo. Diz que permanecem naquele local há quatro anos porque trabalham diretamente com os restaurantes do proprietário da banca e aproveitam para vender o pescado a particulares interessados “em peixe de qualidade”.
Ao comprarem mais quantidade, ganham em “economia de escala”, isto é, ficam com margem para negociar os preços “um pouquinho mais em conta” para os restaurantes que, assim, conseguem servir “peixe sempre fresco”, mas também aos compradores do mercado.
Se assim não fosse, explica Lúcia, dificilmente “aguentariam” a banca de pescado, uma vez que os consumidores com menos recursos “optam por comprar nos supermercados”. A vendedora defende, no entanto, que a “qualidade incomparável” do peixe da sua banca “nada tem que ver” com o peixe vendido nesses locais. “A frescura e qualidade são de outro nível”, atira.
Avaliação “100%” positiva
A churrasqueira do transmontano Alcides Pereira, segundo o próprio, é já uma das referências gastronómicas dos moradores das torres em volta do Mercado de Carnaxide, que compram a comida que sai da grelha a fumegar e levam diretamente para casa. O comerciante tem casa aberta no Mercado há 19 anos e mostra com orgulho a carta da churrasqueira.
“Veja aqui, olhe para a qualidade deste bacalhau, para o bom aspeto destes chocos, deste peixe grelhado, desta carne. Não vai encontrar comida como a nossa em mais lado nenhum”, explica.
De acordo Com Alcides Pereira, o “segredo” da sua casa está na atenção à qualidade de “todos os produtos e temperos utilizados” e na confeção primorosa dos alimentos. “Nós não compramos produtos de marca branca. Só tenho aqui produtos de primeira qualidade porque, apesar de serem mais caros, isso reflete-se na qualidade final da comida vendida. Os frangos são certificados, o azeite é de qualidade superior, a carne e peixe são produtos de primeira”, o que resulta na manutenção de uma clientela fiel, principalmente no horário do jantar e aos fins de semana, entre as quais se destacam algumas figuras públicas da área televisiva.
“As pessoas sabem que a minha churrasqueira não pratica preços baixos, mas também sabem que a comida que levam para casa obedece a critérios de qualidade muito rigorosos”, assevera, exibindo um cartas com as avaliações “todas de 100%” feitas pelos clientes.
Ensinar a arte do tricot
Fátima Ferreira tem o seu negócio de retrosaria à venda. A comerciante assume que já leva 50 anos atrás de balcões no atendimento ao público e que já “está um pouco cansada” e que o corpo (e a mente) estão saturados de tantos dias, semanas, meses, anos, décadas, passados atrás de um balcão. Há 25 anos mudou-se para o Mercado de Carnaxide, estabelecendo-se com um pequeno negócio de venda de atoalhados, linhas e outros produtos de retrosaria.
Afirma que é com alguma “dor na alma” que tem assistido ao lento definhar do Mercado de Carnaxide, mas defende que “ninguém tem culpa”, porque é um sinal dos tempos. “Os jovens deixaram de vir a estes espaços e os clientes mais idosos ainda resistem e teimam em comprar as suas coisas no comércio local, mas a tendência, em negócios como o meu, é ir fechando portas porque a concorrência de lojas que vendem tudo a preços mais baixos vai matando muitos negócios”, sustenta.
A comerciante sublinha que o seu trabalho é vender, mas mais do que isso consiste em “ajudar as pessoas”, nomeadamente as mais novas, a fazer pontos de tricot e trabalhos de mesmo género. “As pessoas não têm paciência para fazer este tipo de trabalhos. Habituaram-se a comprar tudo feito, ao facilitismo do consumismo, e já ninguém quer ter trabalho para fazer algo de diferente e com muito mais valor”.
O tempo do “usar e deita fora” tomou o lugar ao “faça você mesmo”, usando as técnicas ancestrais, mas muito mais “difíceis”; porém, os resultados da persistência e da minúcia no detalhe na construção de uma peça de roupa feita à mão “serão sempre insubstituíveis”.
Restaurante “gourmet” a preços simpáticos
O chef Ricardo Prazeres tem um currículo digno de fazer corar de vergonha muitos dos nomes mais “sonantes” da cozinha em Portugal. Para além de ter trabalhado como chef no mítico restaurante lisboeta Galeto durante largos anos, foi também o head chef do Sport Lisboa e Benfica, ou seja, o responsável máximo pela preparação da alimentação das várias equipas do clube das “águias”. “Preparava cerca de 700 refeições diárias para os atletas e staff do Benfica”, conta.
Apesar do reconhecimento pelo seu trabalho, “sempre tive na ideia criar o meu próprio restaurante. Em Lisboa, devido ao preço das rendas, era impossível, pelo que comecei a procurar na minha zona (Queijas).
Entretanto, surgiu a oportunidade de criar um espaço de raiz no Mercado de Carnaxide, onde vive muita gente, e eu e a minha esposa achámos que era o local indicado. Fizemos obras e criámos um espaço à nossa medida, onde investimos muito dinheiro, com uma oferta mais diferenciada do que aquela que existia na zona”.
Aberto desde o dia 1 de setembro, a aposta do casal de empreendedores revelar-se-ia como “o passo certo”, dado que clientela “não tem faltado” e o restaurante Mercado dos Prazeres está a conseguir ganhar o seu espaço de afirmação dentro (e fora) de Carnaxide.
Com uma oferta diversificada e em que se aposta em produtos de excelência, como a carne maturada e as proteínas de “primeiro nível”, tem cada vez mais clientes, sedentos de novidade e de uma refeição que esteja ao nível “dos grandes restaurantes de Lisboa”, mas com preços “bem mais comedidos”.
Ricardo Prazeres conclui o depoimento com uma constatação: “Estamos felizes por estarmos a trabalhar naquilo que gostamos, como gostamos, e na nossa zona”.
Sapateiro Mário Reis acredita numa intervenção
Há um quarto de século que Mário Reis tem o seu negócio no Mercado de Carnaxide. A pequena loja de arranjo de calçado já teve melhores dias, mas o comerciante assume que, como qualquer negócio, “tem os seus altos e baixos, mas ainda dá para ir vivendo. Dá para pagar as contas”, revela.
Apesar da flutuação da faturação, o sapateiro revela que tem “muita clientela fixa”, fidelizada ao longo dos anos com um serviço competente e vocacionado para o atendimento personalizado.
Mário Reis defende a necessidade de haver uma “revitalização” do Mercado com iniciativas que permitissem a ocupação da totalidade das bancas do interior do espaço comercial, que estão desocupadas “há muito tempo”. Mas atribui o paulatino abandono do interior do Mercado à conjuntura atual e aos “novos hábitos de consumo” das gerações mais novas.
“Há só três bancas ocupadas, mas o Mercado merecia mais. Precisávamos de mais bancas com comércio, precisávamos de mais uns ‘olhares’ para o interior do espaço”.
Não obstante, Mário Reis fica à espera de uma intervenção “prometida” e acredita que “algo será feito” para mudar o panorama comercial de uma estrutura que continua num limbo de indefinição.
Aposta vencedora
O barbeiro Francimar Oliveira trabalhou durante alguns anos numa barbearia de Carnaxide. Quando soube que o Mercado de Carnaxide tinha uma pequena loja para alugar, não pensou duas vezes. Decidiu “arriscar” a montar negócio por conta própria e mudou-se para o Mercado há pouco mais de um ano.
Volvido um ano e três meses, Francimar Oliveira revela ter sido essa a melhor decisão da sua vida. “Não me posso queixar. Tenho muita clientela, que me acompanhou da outra barbearia, e tenho conseguido arranjar mais clientes desde que aqui estou”.
O facto de o interior do Mercado estar praticamente vazio, não perturba o dia a dia do barbeiro brasileiro. Mas, ainda assim, defende que o espaço onde tem o seu negócio “merecia” alguma “ação publicitária” para atrair mais comerciantes e moradores da freguesia.
Dar mais visibilidade ao Mercado
Helena Figueiredo é proprietária de uma lavandaria e de um atelier de costura no Mercado de Carnaxide. Revela que se mudou para o Mercado há 4 anos por ser mais conveniente em termos de gestão de tempo e de recursos – a loja de costura estava noutro local de Carnaxide e a vinda para o Mercado “evitou a necessidade de andar de lá para cá”, assume.
Não se arrepende da decisão, pois “não há razão de queixa” de ambos os negócios. Mas gostaria de ver “outra dinâmica” comercial no espaço que serve de casa-mãe para as suas lojas. “O Mercado está um pouco antiquado e necessita de uma requalificação”.
Para além disso, “está ‘escondido’ e ainda há muita gente que vive em Carnaxide que não sabe que a freguesia tem um Mercado (…) Acho que deveria haver mais iniciativas para chamar as pessoas aqui”, anota.
Helena Figueiredo refere que (a Junta de Freguesia) tem levado a cabo algumas iniciativas para publicitar o Mercado, mas são esparsas e funcionam como “um paliativo” que não está a resultar, segundo diz.
A comerciante defende, por exemplo, a criação de uma verdadeira campanha publicitária para dar destaque “às potencialidades” do Mercado, que são muitas, pois “tem um pé alto que poderia ser aproveitado para construírem pequenos escritórios” que albergassem microempresas tecnológicas ou de serviços.
Na visão de Helena Figueiredo, o Mercado necessita de “uma nova dinâmica”, mas acredita que a instalação do ginásio no piso superior pode alavancar o crescimento do espaço, uma vez que vai atrair “muita gente” e suscitar a curiosidade de muitos mais.
O Mercado conta também com o Restaurante Krioula, que serve cozinha de inspiração africana, e tem atraído clientela pela qualidade diferenciada da sua comida, mas também pelo facto de os comensais poderem saborear os petiscos africanos ao som de uma banda local que embala os clientes ao som das mornas e as coladeiras de Cabo Verde.
O Mercado de Carnaxide tem ainda uma loja de cabeleireira e esteticista, que se escusou a falar com a nossa reportagem.
Quase todos os comerciantes ouvidos nesta reportagem pedem para que os consumidores não se esqueçam do sangue, suor e lágrimas que diariamente são derramados por pequenos agricultores, pescadores, produtores de gado, padeiros, comerciantes, para levarem para a mesa dos portugueses alimentos que promovem a sua saúde, mas também a sobrevivência de um mundo em que os negócios ainda se fazem de uma forma mais humana.