Aos gritos de “Ié, Ié, Ié” e “A nossa marcha é linda”, milhares de lisboetas deram, assim, as boas-vindas às marchas populares que se exibiram na Altice Arena, em Lisboa, na primeira jornada da competição. Para trás ficaram meses de trabalho intenso e muito afinco para que as marchas corram da melhor maneira. O processo é muito mais do que aparenta, trabalhoso e iniciado com meses de antecedência.
No ar, sentia-se o cheiro a gente determinada a tentar levar o seu bairro à vitória. Entre um «veja lá que o nosso bairro tem a melhor marcha» e as músicas das marchas cantadas em coro a uma só voz, não se pode negar que dá vontade de fazermos parte daquele mundo.
E nada melhor que «um sorriso de uma criança», acompanhado com «muitas brincadeiras e travessuras» para mostrar que «Lisboa menina e moça desperta e vai à janela espreitar o amanhecer», depois sai «com um ar namoradeiro e a saia cor do mar» para ver passar a Marcha Infantil da Voz do Operário que apenas pede: «Queremos o verde que tem a natureza/À nossa volta para não haver tristeza/Queremos ter tempo para ver e aprender/A ser amigos, amigos a valer».
Todavia, como «cada bairro é um noivo que com ela quer casar», a Marcha do Bairro da Boavista cantou, a quatro ventos: «Só pelo meu bairro/Sinto esta paixão/Que me conquista/E é de Lisboa/É boa, tão boa/Boa…vista».
E, como por entre ruas e ruelas, jardins, escadinhas, becos e fontes já se sente o cheiro da sardinha assada dos arraiais, a Marcha da Bica, que fez questão de homenagear Fernando Duarte, afina as vozes e canta para quem quer ouvir: «Toda a gente já saiu para o arraial/Por lá se encontram mulheres ditas de má vida/E outras senhoras que a má língua não comenta/Que a nossa marcha quando desce a Av./Baralha o tempo e volta aos anos 60»
Fiel às suas tradições e querendo homenagear profissões tradicionais de Lisboa, que ainda fazem parte de um imaginário da cidade que se pretende manter viva, não esquecendo o clássico autocarro 39, a Marcha de Marvila levou ao Altice Arena os «heróis da fuligem», os operários e operárias que nas mais diversas indústrias contribuíram para o progresso do bairro. E, assim, «Na oficina ou na fornalha/Para ganhar o seu salário/Fato-macaco ou bata de cotim/Noutros tempos era assim/Que vestia o operário».
E falar de Lisboa sem falar do Tejo é como ir «a Roma e não ver o papa», a Marcha de Alfama lembra que o «Tejo sempre abraçou Alfama antes de se lançar ao mar, proporcionando o sustento diário às suas gentes. E, daí o refrão: «Quero abraçar Alfama/Antes de me lançar ao mar/Teu povo muito te ama/sempre que canta te chama/Não há nada a recear».
A baixa das tabernas e tascas, da ginjinha e dos pregões populares da Lisboa antiga que a Marcha da Baixa não quer deixar morrer e, por isso, ainda «bate o pé» ao recordar: «O importante, o importante/Era o vinho o importante/A caneca ia acima/Depois logo vinha a baixo» e, talvez devido a isso: «Andavam de esquina, em esquina/A partilhar felicidade/Pelo povo e a gente fina/Que povoava a cidade/ Não havia ‘telélé’/Não havia o ‘fast food’/Eram pregões do Zé/Era toda uma atitude».
Já o bairro do santo padroeiro de Lisboa, S. Vicente, levou ao Altice Arena a «estória de amor» entre um cocheiro, o Tozé, e uma criadinha espevitada de seu nome Filó, revivendo, desta forma, a época dos coches e dos carros engalanados que, constantemente, cruzavam as ruelas de S. Vicente, recordando: «São vicente tem a sua fidalguia/Com palácios, carruagens e brasões…./Entre os aios e os lacaios de uma casa/A criada e o cocheiro … estão a ver/Ela é linda, põe-lhe o coração em brasa/E ele afasta o alazão só para a ter…»
As vilas operárias de Lisboa, criadas nos princípios do século XX, fazem parte integrante do património arquitetónica de Lisboa e, por isso, a Marcha da Graça quis homenagear esses bairros que já se tornaram ex-libris da capital. Mas, como não poderia deixar de ser, a Marcha da Graça «puxou a brasa à sua sardinha» e homenageou a Vila Berta, dedicando-lhe o seu tema: «Anda Berta/Vem saltar uma fogueira/E dançar a noite inteira/Vem dai para o bailarico/Vila Berta/És esperta e ladina/E com o teu ar de menina/Vais arranjar namorico».
E, tuuum tum tum tum tum… já se começam a ouvir os passos dos marchantes a pisar a Avenida da Liberdade, no próximo dia 12 de junho. Já cheira a sardinha assada e a bifana está pronta a comer. As fitas estão colocadas e o Santo António está pronto para começar. As marchas estão alinhadas e está na hora de encher a Avenida.