CENTRO HISTÓRICO DA CIDADE EM DEBATE | Estudo revela que Lisboa pode perder identidade

Misericórdia, Santa Maria Maior e São Vicente são algumas das freguesias que estão a ser mais afetadas pelo êxodo dos moradores do centro histórico de Lisboa. As três juntas uniram-se para a realização de um estudo que fez o diagnóstico e que mostrou caminhos para contrariar esta tendência.

O centro histórico de Lisboa corre o risco de descaracterizar-se e de perder identidade, cultura e património. Esta é uma das conclusões do estudo “Novas Dinâmicas Urbanas no Centro Histórico de Lisboa”, um diagnóstico encomendado à empresa Quaternaire Portugal pela juntas de freguesia de São Vicente, Santa Maria Maior e Misericórdia, que acolheu a apresentação dos resultados.

Segundo Artur Costa, responsável pelo estudo, este risco deve-se a fatores como o atual mercado de arrendamento, o aumento da atividade turística, um crescimento do investimento e mercado imobiliário, mas também pelo “regresso ao centro” como uma “moda”.

Para além da descaracterização, poderá Lisboa, segundo o especialista, “perder valor, que pode conduzir a uma futura situação de recessão económica, social e urbana no centro histórico.

Mas há mais riscos a ter em conta, defende Artur Costa: o agravamento de fenómenos de exclusão social, “com perda de mix socioeconómico e quebra demográfica estrutural”, e a perda de qualidade de vida dos residentes, “resultante do ruído, da insegurança ou da degradação do espaço público”.

As ilações do estudo “Novas Dinâmicas Urbanas no Centro Histórico de Lisboa” antecipam ainda a redução da qualidade da construção, “especialmente no que se refere à resistência sísmica das estruturas reabilitadas, comprometendo a segurança individual e coletiva”, e o aumento da vulnerabilidade em situações de acidente ou catástrofe.

“O principal cenário tendencial mostra ser, no caso de uma relativa ausência de intervenção política, um cenário consideravelmente insustentável”, lê-se no texto da análise.


Na opinião de Artur Costa, muitos destes fatores, que começaram a manifestar-se com maior intensidade desde 2014 (com o fim da Troika) não vão recuar nos próximos anos. Ou seja, as tendências futuras apontam para um turismo em crescimento, a atividade imobiliária sem abrandamento e o contínuo aumento dos preços no centro histórico.

Presente na apresentação pública do estudo, Helena Roseta revelou-se “bastante preocupada”. De acordo com a presidente da Assembleia Municipal da Câmara Municipal de Lisboa, o centro histórico de Lisboa assiste já “a uma bolha imobiliária, com uma evolução de preços absurda”.

Para combater este cenário, a ex-vereadora defende que “a regulação deve ser pública, a fiscalização mais intensa, e que os municípios devem ter um papel mais importante no alojamento local”.

Já os presidentes das freguesias que se uniram para este diagnóstico afinam pelo mesmo diapasão: muita da responsabilidade está na nova lei do arrendamento.

 

Carla Madeira, presidente da Junta da Misericórdia, explica que “tem a perder moradores” na sua freguesia. “São pessoas que estão a ser expulsas por causa da nova lei do arrendamento, mas muitas delas querem continuar a morar aqui na freguesia. Apenas podemos prestar aconselhamento jurídico, que tem evitado muitas saídas”, relata.

“Inquetação” é o sentimento de Natalina Moura. A presidente da Junta de Freguesia de São Vicente revela que “o número de consultas jurídicas quase que duplicou em 2017”.

A autarca considera os “preços são proibitivos”, mas não deixa de sublinhar a reabilitação como “ponto mais positivo” da conjuntura.

Por sua vez, Miguel Coelho frisa que “nem todas as novas dinâmicas são más”, mas que se impõe “refletir sobre o impacto na qualidade de vida dos cidadãos”. E que para isso é “preciso rever as políticas municipais de habitação”, que não dependem não só das juntas e câmara, mas principalmente do Estado.

O presidente da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior apela também ao “reforço de apoio às freguesias que sofrem mais com este impacto”.

A preocupação vem também do seio da Câmara Municipal de Lisboa. Paula Marques é vereadora para habitação na autarquia e, durante o evento, salientou que “o direito a habitar no centro histórico é de todos”.

E acrescentou: “defendo uma mudança radical na lei das rendas”, lembrando que “é função do Estado atuar fazendo discriminação positiva a pessoas com condições socioeconómicas menos favoráveis”.

Parte interessada na matéria, a FAMALIS “Federação das Associações de Moradores da Área Metropolitana de Lisboa) fez-se também representar neste encontro e aproveitou para denunciar aquilo que considera de “bullying imobiliário”.

Luís Paisana entende que “este estudo veio tarde demais”. O dirigente da FAMALIS prevê que “o centro histórico pode vir a não ter moradores”, apenas turistas ou visitantes.

A FAMALIS também está preocupada com o eventual “desaparecimento do comércio local”.

“Higiene urbana, ruído, segurança e exclusão social são alguns dos problemas que podem vir a associar-se”, acrescenta.

“SINGULARIDADE”
“Manter a singularidade e o carácter distintivo do centro histórico de Lisboa, preservando a memória e o património” é o primeiro do eixos nos quais os decisores devem incorporar para garantir uma visão de sustentabilidade.

O estudo da Quaternaire Portugal elenca ainda a fixação de residentes permanentes, “garantindo um mosaico social, económico e cultural coerente com o posicionamento do centro histórico de Lisboa como um espaço urbano universal, tolerante e multicultural, sem perder a singularidade e oferecendo um padrão de qualidade de vida elevado”.

Outro dos eixos visa “assegurar uma gestão urbana que responda às necessidades dos residentes permanentes e de outros city users, incluindo os turistas, os visitantes, os trabalhadores e os residentes de curta duração”.

Estes são os pilares da estratégia sugerida. Para colocá-la em ação, os responsáveis pelo estudo indicam várias linhas de intervenção.

Que começam pelo planeamento e monitorização das dinâmicas urbanas, que deverá ficar a cargo da Câmara Municipal de Lisboa.

Segue-se depois a “Promoção de uma Cidade Diversa e Multifuncional”, que nada mais é do que “promover a vizinhança entre residentes, antigos e novos, e a cultura e valores locais junto dos visitantes”, mas também “o desenvolvimento de um programa de urbanismo comercial”.

A investigação também indica como caminho o “reforço e qualificação dos serviços públicos”, que devem assentar na melhoria da oferta de transporte coletivo, no reforço dos serviços de gestão urbana e no alargamento da rede de equipamentos e serviços de apoio às famílias.

A revisão da política municipal de habitação e reabilitação urbana, o reforço financeiro das autoridades locais para responder às novas exigências e a participação ativa no processo de revisão do enquadramento jurídico do alojamento local são as restantes linhas de intervenção que o estudo dá como prioritárias.

 

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