Dizem que toda a gente percebe de marchas e ninguém sabe nada sobre elas.
Com a ajuda de Carlos Español, que nelas trabalha há 30 anos, o Olhares de Lisboa descobriu que, em oito décadas, não houve só um Mourinho das marchas. Ensaiadores, visionários e criadores de quem se possa dizer, como de Carlos Mendonça, que há um “antes e depois” deles. A projecção turística e mundial das marchas faz parte da sua realidade nos últimos anos, tornando este evento um dos mais marcantes, na Europa e fora dela. Mas há algo que estará sempre presente nos desfiles: A discórdia…
O Olhares de Lisboa falou com Carlos Español, especialista em marchas, pedindo-lhe que nos ajudasse a descrever a história desta celebração tão alfacinha.
Marchas populares
O sumo de Lisboa e o sal do bairrismo
Em 1932 é que tudo começou, mas nessa altura as marchas ainda não eram bem marchas. Eram desfiles de ranchos folclóricos das regiões portuguesas e só em 1934 assumiram um carácter mais marcado de espectáculo de Lisboa, embora sempre com as influências regionais que foram transportadas das várias zonas do país para os bairros da capital onde esses grupos de fora da cidade se instalaram.
Podem dividir-se em vários períodos, começando por uma era genericamente associada ao regime do Estado Novo, e caracterizada pelos antigos arquinhos e balões de que os nossos avós ainda se lembram.
Na década de 1980, com grandes cenógrafos e dinamizadores como Hélder Carlos, inicia-se um novo fôlego. E nos anos 1990 começa a era de Carlos Mendonça, por todos reconhecido como grande revolucionador destes desfiles tradicionais. Tiveram nesses anos um grande impulso dado por este figurinista, um dos profissionais e criadores que mais deram a este espectáculo.
O Olhares de Lisboa levou a cabo uma longa conversa com Carlos Español, ensaiador de Campo de Ourique e especialista em marchas, pedindo-lhe que nos ajudasse a descrever e relatar a história e natureza desta celebração tão alfacinha e portuguesa. A reflexão que aqui lhe apresentamos resulta desse diálogo.
Destaca-se particularmente, no passado, o papel de Hélder Carlos, até porque quando estava à frente da marcha do Castelo, este bairro ganhava quase tudo o que havia para conquistar. Outro nome incontornável, já na decada de 1990, é Amadeu Fernando, responsável pela “marcha dos mil anos”, ambiciosa e polémica, pelo facto de os arcos andarem sobre rodas.
Amadeu Fernando, e o seu trabalho, foram um marco no mundo das marchas, dos musicais, do teatro e da revista. As décadas de 1980 e 1990 destacam-se por terem contido, além de Amadeu, Hélder Carlos e Carlos Mendonça, o mestre José Ramalho (da Madragoa) e José Azevedo – por vezes coincidindo no tempo e “em guerra”, em marchas concorrentes.
José Azevedo e Carlos Español foram responsáveis, em 1982, pela música e letra do dueto “Vem ter comigo à Mouraria”, um momento fortemente marcante, arrecadando o primeiro prémio, com os marchantes masculinos e femininos a desafiar-se mutuamente na canção.
Três décadas depois, uma marcha desenvolve-se consoante o que é pretendido pelos seus coordenadores, e conforme os financiamentos que conseguem obter. A Câmara de Lisboa repôs finalmente os três mil euros de fundos por marcha retirados na legislatura anterior, regressando-se assim aos 30 mil euros.
Hoje, os materiais são mais caros, há uma verdadeira indústria das marchas e até lojas especializadas em trabalhar para este espectáculo. As marchas, cada vez mais, representam Lisboa e o país no Mundo.
São um evento mundial, que já se coloca a par com o o Carnaval brasileiro. Se começa a fazer parte da realidade ter cada vez mais turistas de todo o Planeta interessados em assistir e acompanhar os desfiles, há outro factor que está desde sempre enraizado nestas festividades bairristas. A discórdia.
As marchas e as colectividades, os marchantes e os artistas que trabalham para os desfiles terão quase sempre algo a dizer sobre a justeza, ou falta dela, dos regulamentos e das classificações.
Do outro lado, nomeadamente no próprio júri, há também quem diga que as colectividades criticam, reclamam, mas quase nunca fazem propostas concretas e palpáveis para alterar os regulamentos… Ou que acabam por aceitar as modificações determinadas pela Câmara Municipal de Lisboa e pela EGEAC, mas depois, após os desfiles, têm sempre protestos a fazer.
Dir-se-á que um concurso de marchas sem uma boa discussão, sem umas quantas polémicas, sem certos diálogos muito acesos e alguma gritaria não é um verdadeiro concurso de marchas. Depois, passado algum tempo, já está tudo (mais ou menos) bem.
Criado nas marchas, nascido no teatro
Dentro da barriga da mãe, marchante do Bairro Alto. Assim começou Carlos Español a marchar, no concurso de 1966.
Na madrugada de 12 de Novembro desse ano a mãe, actriz no Maria Vitória, saíu da segunda sessão de teatro, às seis da manhã, foi a casa buscar os apetrechos e seguiu de urgência para o São José, onde o futuro ensaiador nasceu, na antiga Maternidade de Santa Bárbara.
Muito jovem, Español começou a carreira no Teatro Variedades. O chefe, Adelino Leitão, trabalhava na elaboração e pintura manual de arcos, cenografia e calçado para marchas. Foi pela sua mão que, no inicio da década de 1980, começou a trabalhar nesse mundo.
Nos anos em que estas estiveram interrompidas em Lisboa, foi dançar para o Scala de Barcelona, por amor a uma bailarina.
Em 1987, com 19 anos, foi convidado para elaborar a Grande Marcha de Lisboa, que iria representar o país no estrangeiro – o que implicaria dirigir grandes profissionais consagrados, com idade para serem seus avós. Achou que a juventude lhe retirava legitimidade para tal, e recusou a oferta da Câmara Municipal de Lisboa.
Foi em 1989, como assistente de coreografia, chamado para apoiar na marcha da Ajuda a coreógrafa Glória Cristal, menos presente devido a compromissos profissionais no Teatro ABC, que se deu a sua verdadeira rampa de lançamento neste meio.
E foi a partir daí que Carlos se foi tornando, também ele próprio, um desses grandes senhores da história das marchas, cujos nomes e percursos sabe todos na ponta da língua. Hoje em dia já há livros sobre ele.
Por amor às marchas
1988 – Ensaiador em Carnide
1990 -1991 – Graça
1992 – Bairro Alto
1993-1994 – Graça
1995 – Castelo
1996-2000 – Alto do Pina
2001-2002 – Olivais
2003-2004 – Criou a Marcha do Lumiar
2005-2006 – Bairro Alto
2007 –2008 – Olivais
2009-2010- Mercados
2011-2012 – Baixa
2013-2015 – Benfica
2017 – Campo de Ourique
Sagres – Patrocinador Principal de “Olhares de Lisboa – Marchas Populares 2017”