Não há memória viva de um cenário em que, existindo oferta e procura, o comércio (que só surge como corolário do cruzamento de ambas) não tivesse condições para “poder acontecer”, gerando aquilo a que, à falta de melhor designação, designo por “DesComércio”.
É sabido que o setor do Comércio a Retalho, em geral, e os comércios de proximidade, mais ou menos, tradicionais, tem vivido fases em que as incertezas foram a única certeza com que sempre pôde contar.
Ainda assim, por muito tempo e/ou vontade que o “prospetivador” possa querer dedicar a estas matérias de “pensar, num presente, o(s) futuro(s)” do Comércio, ou de qualquer outra área, prever a ocorrência (bem como os seus efeitos) de uma pandemia à escala planetária, como aquela que vivenciámos, não estaria decerto nas cogitações dos mais audazes ou prudentes.
À parte tais considerações, talvez mais inspiradas em ciência já consagrada, e sendo o Comércio, ainda, ciência sem nome, o que ocorreu no setor do retalho, por efeito da pandemia, foi algo de inimaginável, daí a imprevisibilidade, a indefinição e a desorientação associada.
Não haverá memória viva de um tal cenário em que, existindo oferta e procura, o comércio (que só surge como corolário do cruzamento de ambas) não tivesse condições para “poder acontecer”.
Por impedimento da oferta (que não podia “vender”) e impossibilidade da procura (que não podia “comprar”), gerou-se aquilo a que, à falta de melhor designação, talvez mera desinspiração, designo de “DesComércio”.
Parece ter-se vivido a verdadeira negação daquilo que sempre foi (re)conhecido como “Comércio”, isto é, apesar de existir procura gerada por necessidades por satisfazer e existir oferta com condições para assegurar tal satisfação, é-lhe negada a possibilidade de “fazer acontecer’.
Há, por assim dizer, uma “desconstrução” da essência do Comércio ou, minimizando os seus potenciais efeitos, ocorre uma “descontinuidade” da sua normal atividade.
Por conseguinte, depois de múltiplos desassossegos provocados no Comércio, de demasiados desencantos com as medidas adotadas, de inúmeras desconfianças com as ações implementadas, de muitos desatinos para com a(s) realidade(s) da(s) oferta(s), de excessivos desencontros com as necessidades da(s) procura(s), de tamanhas desorientações entre querer confinar e crer em desconfinar, ao desfecho, mais do que expectável, de tão vasto campo de “(des)ideias”, chegou-se a este (in)certo “DesComércio”.
O que era tido como adquirido, passou a ser factor determinante – a segurança e a confiança (re)assumem-se e (re)afirmam-se naquilo que são os comportamentos de quem compra, nas decisões de quem consome.
Compra e consumo voltam a esgrimir diferenças, de facto sempre foram coisa distinta!
Este “DesComércio” trará consigo outras consequências, para já, talvez, menos visíveis, mas que serão bem reveladoras e elucidativas daquilo que tal cenário significa, que se traduzem numa não reabertura de muitos comércios que, por força das circunstâncias, já não retomam a sua atividade normal, não voltando àquilo que alguns tanto insistiram em apelidar de um “novo normal”. Aliás, outra ideia, algo enviesada, deturpada pelo domínio do desconhecido, a que tantos se agarraram neste tempo em que, por vezes, se confundem conceitos e preconceitos. Concretizando, a ideia era que o ideal seria retomar esse “novo normal”, como que renascidos de algo de mau ocorrido e ultrapassado, e que apenas obstaculizou “momentaneamente” um suposto “velho normal” que se vivia! Ora, a existir setor que não experienciava um “normal” no período pré-pandemia, seria o Comércio.
Para alguns comércios, desejamos poucos, receamos muitos, este interregno acaba por ser definitivo, traduzindo-se no encerramento da loja, na falência do negócio. Não há retoma, não há normalidade alguma num tal desfecho.
Tal situação, doravante de referência, (o dito, “DesComércio”), decerto obrigará a uma reflexão profunda sobre as funções e as disfunções do Comércio (o que temos, o que queremos e no que cremos), pois se num passado recente os desassossegos andavam à volta de novos licenciamentos e horários de funcionamento “regulados e/ou impostos” pela Administração (central e/ou local), num futuro muito “presente” o “DesComércio” exigirá que o setor possa ser repensado, por todos, bem para além das Administrações, nas suas funções, no contexto do planeamento, organização e gestão territorial, mas também na relação entre as partes (não só, numa ótica restritiva, de quem vende e quem compra, mas também “como”, “quando”, “porquê”, “onde”,…).
O Comércio já fez por merecer ser planeado, organizado e gerido, diria “prospetivado”, mas este “DesComércio” exige ser prevenido, combatido, enfim, mitigado.
Poderemos, com tudo isto, estar perante a emergência de um “NeoComércio”?
De facto, cientes de que a aparência e a ilusão estão por vezes demasiado próximas na abordagem daquilo que é Comércio, será de crer que entre este “DesComércio” e um “NeoComércio”, capaz de dar resposta aos novos desafios, certos e incertos, com que a Sociedade poderá vir a ser confrontada, por imprevisíveis que possam ser, haverá necessariamente dois estádios evolutivos, arriscaria cenários, sejam eles, contrastados ou tendenciais, isto é, um “Mais Comércio”, com o primado da quantidade, da vontade de reação e do tempo imediato, e um “Comércio Mais…” que primará pela qualidade, pela vontade de pró-ação, pelas competências e do tempo longo com a imprescindível adaptabilidade e resiliência, agora tão conceituada nos meandros da ciência opinativa.
No Comércio, já se afirmavam os resilientes antes mesmo de se “conhecer” a … resiliência!
(ex-Diretor Municipal das Atividades Económicas da Câmara Municipal de Lisboa)