«Portugal numa redoma, ou o país que a censura não deixava ver» é, de certa forma, o grande tema da exposição “Proibido por inconveniente”, patente no edifício do Diário de Notícias. São materiais das Censuras no Arquivo Ephemera e tudo o que ali se vê provém da biblioteca e arquivo de José Pacheco Pereira, muitos materiais doados e outros salvos in extremis, quando estavam arrematados com destino aos Estados Unidos.
Integrada no programa “Abril em Lisboa”, da EGEAC, a exposição “Proibido por inconveniente – Materiais das Censuras no Arquivo Ephemera”, resulta de uma parceria entre a Câmara de Lisboa, a EGEAC Cultura em Lisboa e a Ephemera, estando dividida em vários núcleos temáticos, que mostram as várias faces da censura através de jornais, livros, revistas, discos, autos, relatórios e publicações clandestinas do historiador e curador da exposição, José Pacheco Pereira.
A partir do espólio do Arquivo Ephemera, biblioteca e arquivo do historiador José Pacheco Pereira, os comissários, Júlia Leitão de Barros e Carlos Nuno, mostram nesta exposição exemplos das várias censuras do Estado Novo, eficaz arma do regime da ditadura. Mas, à volta da data do 25 de Abril de 2022, a exposição tem também uma intenção pedagógica que, segundo Pacheco Pereira, pretende «mostrar o que é a Liberdade, pela sua negação».
Partindo da frase de Oliveira Salazar que «só existe aquilo que o público sabe que existe», Pacheco Pereira defende que o grande feito da Censura, existente durante 48 anos, foi deixar como herança, até aos nossos dias, uma nostalgia de um Portugal onde todos se entendiam, onde havia «consenso, onde todos trabalhavam pelo bem comum», sem corrupção que não fosse o roubo do pão pelos necessitados, onde havia respeito e boa educação. Ou seja, uma nostalgia perversa do Portugal da ditadura.
«Esta é uma mostra importante, que vai estar patente até 27 de abril, por construir as memórias do que não podemos esquecer», realçou o presidente da Câmara de Lisboa, Carlos Moedas, presente na cerimónia de inauguração da exposição, salientando, por outro lado, que é necessário lembrar aos mais novos que, com o 25 de Abril, «conquistamos a liberdade de pensar, de escrever e de reivindicar».
Segundo Carlos Moedas, quando se deu o 25 de Abril «tinha 3 anos» e foi o pai, jornalista e fundador do Diário do Alentejo, que repetidamente lhe contava as histórias «sobre o lápis azul (censura)» que não permitia a publicação de notícias. Contudo, segundo explicou Carlos Moedas, a censura na província era diferente da que existia em Lisboa. «Em Beja, o meu pai tinha que conviver diariamente com o censor, porque a terra era pequena e diariamente onde quer que o meu pai estivesse lá estava o censor. Na grande cidade, era diferente os jornalistas não tinham esse convívio com o censor».
São estas pequenas histórias dos tempos «do antes 25 de Abril» que devem «ser contadas repetidamente», afirma Carlos Moedas, defendendo que, no dia «em que deixarmos de contar a nossa história, enfraquecemos a nossa identidade».
Tudo era censurável
«Vai além da política», diz Pacheco Pereira sobre a exposição, acrescentando «a censura não se limitava ao político. Ia muito mais longe». Há alvos da censura «que têm evidentemente uma componente política, mas vai para além da politica», garante Pacheco Pereira.
Na sala que recebe “Proibido por Inconveniente”, quem olha para cima é recebido por um friso de Almada Negreiros, que conta os vários passos da produção de um jornal, onde só falta mesmo a parte da censura. Por ironia, ou por conveniência, esta exposição quer também destapar essa vontade da ditadura em tornar invisível o seu próprio processo de censura.
«Há vários exemplos dessa permanência da censura: desvalorização da política, dos partidos, da própria democracia, a ideia de que o normal é o consenso e não a diferença, a ideia de que o que é bom para o país é que todos nos entendemos. Esse fundo não desapareceu e hoje é reanimado por um certo populismo e pelas redes sociais», comenta Pacheco Pereira.
«As mulheres, a sexualidade feminina, a voz das mulheres. Não era só a questão da sexualidade, mas que as mulheres falassem sobre si próprias. É o caso das Novas Cartas Portuguesas. Os livros da Simone de Beauvoir também eram proibidos, a Maria Archer tem uma série de livros proibidos», continua.
No tempo do Estado Novo, a censura era tão complexa e profunda que nem os homens do lápis azul, maioritariamente militares reformados que queriam fazer mais uns trocos, tinham tempo e disponibilidade para ver tudo. Peças de teatro, filmes, anúncios de publicidade, jornais locais. Muito para cortar, mandar para trás ou deixar passar, nem que fosse com um aviso para não ser comercializado em bibliotecas operárias, por exemplo. O Grémio, associação dos empresários do Cinema, responsável por várias distribuidoras de filmes em Portugal, não gostava desta falta de tempo porque precisava de fazer dinheiro.
Era o tempo do respeitinho pelo poder e pela autoridade, do país pacífico, bem-comportado, conservador e religioso, mas havia quem, por ousadia, ou por necessidade, quisesse amansar a censura. «Havia distribuidoras que tinham de esperar semanas para saber se podiam exibir em Portugal. Os censores respondiam: o que é que vocês querem? Não temos mais gente, só às terças-feiras à noite é que nos reunimos para ver os filmes». A história, contada entre um misto de risos e surpresa, é partilhada por Carlos Simões Nuno, um dos curadores da exposição
Algumas situações caricatas
Quanto à imprensa, outra das vítimas mais visíveis, onde um corte à última hora obrigava a redefinir as páginas dos jornais e a substituir espaços com fotografias ou poemas, é importante não esquecer que a censura atingia também os jornais locais.
Mais uma vez, o controlo chegava aos mais pequenos pormenores. Tirar a palavra “chamado” de “chamado Estado Novo” ou tirar o número 600 na notícia “600 mineiros em Aljustrel pedem trabalho”. De vigiar, durante a guerra civil espanhola, qual dos lados era favorecido, se republicano, se nacionalista, num determinado artigo a partir do tamanho da letra. Virando a agulha para os jornais de província, a preocupação censória era mais para críticas a “hospitais que funcionavam mal” ou mesmo a acusações de nepotismo. «Era tudo cortado, temas como a corrupção ou o nepotismo. A notícia de um fulano que tinha obtido um cargo político só porque era sobrinho do presidente da câmara? Cortado», disse Carlos Simões Nuno. A “sorte” é que maior parte destes jornais, como a Voz de Cantanhede ou o Democracia do Sul, não eram diários. Havia, portanto, ainda uma margem para corrigir.
Ainda assim, ninguém escapou. A estrutura foi sendo aperfeiçoada para acompanhar a evolução dos tempos. Expandiu-se. Se era preciso promover a neutralidade na Segunda Guerra Mundial, promovia-se. Se era preciso defender a missão ultramarina e evitar que resistência por parte das colónias chegasse a território nacional, defendia-se. Mas quem eram as pessoas por detrás de tudo isto? «Eram burocratas, fáceis de enganar no plano político. Eu próprio os enganei. Mas eram muito bons numa coisa: tudo o que parecesse falta de respeito, tocava uma campainha lá dentro da cabeça e aí eram bons. Não precisavam de ser cultos ou cosmopolitas. Bastavam pequenas frases em fados censurados, por exemplo, onde consideravam uma letra porca», afiança Pacheco Pereira.
Praticamente tudo o que está nesta exposição, visto aos olhos de hoje, pode parecer anedótico de tão obsessivo que se tornou da parte de quem queria esconder o país real para dar aos portugueses uma lição de bons costumes. Um disco de José Afonso em que a capa foi vendida com uma cara cortada por se tratar de um militante do MPLA.
Obras de autores como António Pinho, que nunca pôde usar o próprio nome. Pequenos panfletos com textos sobre a segunda guerra mundial, mas com capa diferente, inspirados em materiais do Partido Comunista Alemão. Um artigo em manchete escrito e assinado por um tal de Clain D’ Estaing, ou vá, Mário Soares, exilado, publicado um dia antes da revolução de 25 de Abril. O livro Julieta das Minhocas, de José Vilhena, o «homem que mais irritava os censores que usava todos os ingredientes de falta de respeito», segundo Pacheco Pereira, que contava a história de uma prostituta que vivia num bairro de lata.
Por vezes, e só meramente «por princípio, o cartoonista via as suas obras vedadas ao público, tal era o lastro de irritação que deixava no Secretariado Nacional de Informação, organismo que, a partir de 1944, centralizou todo e qualquer tipo de censura no país», acrescenta.
Ou mesmo obras escritas e idealizadas por mulheres, de Natália Correia às famosas Três Marias, autoras das Novas Cartas Portuguesas, pelo «perigo de se mostrarem como livres perante a sociedade portuguesa. Quem se atrevia a mexer no guião do regime, arriscava-se a ficar na escuridão. Porque, em pleno Estado Novo, queria-se celebrar o regime, estreitar o debate, limitar opiniões e arrefecer ou proibir a liberdade de expressão. «Chegava-se ao ponto de se censurar anúncios a padarias ou retrosarias. Nestes 48 anos de ditadura, não houve um dia em que um escritor, um pensador, encenador ou cineasta não soubesse que tinha a censura a ver o que faziam», conta Carlos Simões Nuno.
São, por isso, dezenas de panfletos, boletins, despachos e outros tantos materiais, como livros, jornais nacionais e locais, discos ou guiões, que estarão expostos e que podem ser visitados gratuitamente até ao próximo dia 27 de abril. Mas tal como a estrutura organizativa da censura, também nesta exposição “pedagógica” somos encaminhados a conhecer as várias fases desta instituição, quer no seu início, no idos de uns tenebrosos e controladores anos 30 — com várias instituições a colaborar na censura, como a Mocidade Portuguesa –, quer durante a Segunda Guerra Mundial ou mesmo já na Guerra Colonial. Ou seja, até ao derrube do regime, este trabalho nunca parou.
Censura continua visível
Para Pacheco Pereira, não há dúvidas de que a censura continua visível no país, mas agora mais ligada a questões de identidade. Deixou, por isso, uma herança com um rosto diferente. Nem que seja porque esta foi a instituição “mais eficaz” do Estado Novo porque se prolongou para lá da Revolução dos Cravos. Continua, por isso, presente na cabeça das pessoas.
«Há vários exemplos dessa permanência: desvalorização da política, dos partidos, da própria democracia, a ideia de que o normal é o consenso e não a diferença, a ideia de que o que é bom para o país é que todos nos entendemos. Esse fundo não desapareceu e hoje é reanimado por um certo populismo e pelas redes sociais», comenta Pacheco Pereira.