O apagão de ontem deixou Portugal e Espanha sem rede elétrica por mais de 10 horas. O fenómeno, tido como o maior apagão da história de Portugal, parou o país de norte a sul, gerando um clima de apreensão generalizada e de incerteza na população. Fomos ouvir os relatos de como cidadãos viveram o apagão.
Hugo M. trabalha numa multinacional sedeada no Taguspark, em Oeiras. A empresa parou “completamente” depois das 11h30 e as diversas equipas ficaram sem saber o que fazer. Foram para a rua para descontrair e procurar notícias sobre o sucedido.
Quando se apercebeu de que, tão cedo, não haveria eletricidade, meteu-se no carro a caminho da escola do filho. O trajeto, com muitos semáforos, foi “bem mais demorado” do que o habitual. “Notava-se a preocupação na cara dos automobilistas, mas consegui ir buscar o meu filho para o levar para casa, porque ninguém sabia o que iria acontecer”, narra.
Acompanhados pelas notícias de um rádio a pilhas, Hugo tentou acalmar-se, brincando com o filho no pátio da casa. E diz que, durante o apagão, “fez coisas há muito esquecidas”, como “jogos recreativos” com a família e também “desfrutar do silêncio da noite”.
“Chego sempre a casa à hora do jantar (ou depois). Ontem, apesar da preocupação, passámos um dia em família, como na ‘idade da pedra’, mas foi bom voltarmos a ter vida sem a dependência das máquinas”, confessa.
Hugo não entende, não obstante, os discursos políticos que alegam que Portugal “é autossuficiente” em termos de produção energética, mas que, afinal, “tenha de comprar eletricidade à Espanha”.
“Não sendo perito na área, creio ter sido um péssimo negócio a privatização da EDP. Os resultados estão à vista…”, conclui.
Obrigado a fechar portas
José Antunes é proprietário de snack-bar em Carnaxide. Manteve o estabelecimento aberto até às 14h. Ainda conseguiu vender os salgados e alguns dos pregos que dão fama à casa, aguentando o estabelecimento aberto “enquanto os frigoríficos mantiveram o frio”.
Mas, “para não arranjar problemas”, foi obrigado a fechar a porta, muito antes do previsto. O snack-bar costuma encerrar às 20 horas, aproveitando a saída do trabalho dos muitos moradores da freguesia para vender bebidas frescas e petiscos.
Mas, ontem, a situação provocou “uma quebra considerável na faturação”, lamenta o comerciante.
Corrida aos supermercados
A estudante Daniela Abrantes assume que o apagão de ontem a “assustou” porque ficou sem o transporte elétrico que a leva de volta para casa, na zona de Algés, e sem rede no telemóvel. A custo, conseguiu voltar para casa a pé, mas não conseguiu contactar o pai, que trabalha em regime de teletrabalho. No caminho, “vi um senhor na janela de um prédio a dizer que estava preso em casa. Fiquei com o coração aos saltos… e apercebi-me da gravidade da situação. Felizmente, alguém deixou a porta do meu prédio aberto, senão, não iria conseguir entrar em casa”.
Da janela do seu apartamento, Daniela Abrantes começou a ver as pessoas a correrem para o supermercado da rua, e avisou o pai de que tinha “de ir rapidamente comprar os bens de primeira necessidade”.
Quando o pai da estudante voltou a casa, contou que estavam 40 pessoas dentro do supermercado às escuras. “Aquilo foi horrível”, segundo o depoimento do pai da Daniela. “Eu vi pessoas a sair do supermercado com 5 cinco garrafões de água, o que é assustador, mas demonstra o egoísmo de alguns, que querem açambarcar tudo e se esquecem dos seus semelhantes”.
Daniela Abrantes explica que alguns familiares “passaram por apuros maiores”, porque ficaram privados do acesso a coisas “tão simples” como o fogão ou ao automóvel (elétricos), sem se poderem deslocar para procurar um supermercado para comprar água e alimentos para os 5 filhos do casal. “Os meus tios, que vivem em Lisboa, entraram em pânico. Foi assustador”, conclui.
Um “aviso” para sermos “mais analógicos”
Natália Capinha está com as suas duas amigas de sempre no café do bairro. Formam um trio que tem por rotina conviver um pouco na parte da manhã. Explica que não se assustou com o apagão: “Vivi o dia com muita calma e tranquilidade. Tínhamos velas, água, tudo o que era preciso para uma emergência. O meu marido é um amante da rádio e estivemos sempre a acompanhar as notícias, que transmitia de forma ininterrupta a informação que era precisa”, refere.
Natália Capinha adianta, todavia, que pairou no ar “uma certa apreensão” por aquilo que estava a acontecer. Na sua ótica, “foi um aviso” daquilo que poderá passar a ser a nossa vida no futuro. “Este aviso diz-nos que temos de passar a ser um bocadinho mais analógicos, para não [sermos] totalmente dependentes das tecnologias”, defende.
A munícipe de Carnaxide diz “entender a tática comercial de comprarmos eletricidade em Espanha, porque é mais barata”, mas que este tipo de dependências comerciais “tem de ser resolvido pelo governo”.
“Vamos para eleições e está na altura de analisarmos quem defende os interesses do país e de votarmos bem”, anota.
Maria Luís Pereira também não se afligiu com o apagão. Explica que estava prevenida para o pior e que já tinha comprado pilhas e uma “telefonia” para saber as novidades. De resto, aproveitou o tempo de suspensão do país para “fazer tricot”, sem entrar em “pânicos desnecessários”.
Trancas à porta
Luís Montenegro, primeiro-ministro de Portugal, falou ao país na noite desta segunda-feira, afirmando que o apagão generalizado a nível nacional teve origem em Espanha.
“Não há ainda apuramento cabal da origem da situação que levou a este apagão no fornecimento de energia, quer em Portugal, quer em Espanha, mas há alguns elementos que apontam numa direção: não está relacionado com a rede elétrica portuguesa e, como estamos ligados à rede espanhola, terá sido nessa que teve origem a falha, que estará relacionada com o aumento abrupto na rede espanhola. Não conseguimos explicar, mas foi esse aumento da tensão em Espanha que fez disparar os mecanismos de segurança. É preciso calibrar a ligação com o consumidor final, é isso que os operadores estão agora a efetuar, para não cair toda a ligação”, explicou, no Palácio de São Bento.
Luís Montenegro garantiu ainda que já está a ser analisada, nomeadamente com a REN, a necessidade de “reforçar a capacidade de prevenção e resiliência, para evitar situações como esta”.