A apresentação pública do arquivo sonoro Igrejas Caeiro na Casa-Museu que leva o nome do radialista ficou marcada pela divulgação de gravações inéditas de Amália Rodrigues e Tony de Matos. As três gravações foram descobertas “numa pilha de caixas” que estavam amontoadas na casa do homem da rádio que celebrizou o programa “Os Companheiros da Alegria”.
No âmbito das celebrações do 33º aniversário da Fundação Marquês de Pombal promoveu, no dia 13 de maio, a apresentação pública do arquivo sonoro Igrejas Caeiro, um acervo de elevado valor histórico e científico, essencial para o estudo da rádio e dos espetáculos em Portugal no século XX.
O património sonoro que Francisco Igrejas Caeiro (1917-2012) deixou à Fundação Marquês de Pombal está a ser objeto de tratamento que visa garantir a sua preservação e futuro acesso.
Este projeto, liderado pelo Arquivo Nacional do Som, mobiliza várias entidades especializadas neste tipo de documentação. Na sessão foram divulgados os trabalhos já levados a cabo e as perspetivas futuras associadas a este acervo documental.
Durante a sessão, foram apresentadas duas gravações inéditas de Amália Rodrigues da década de 1950, bem como uma bela canção de amor do cantor Tony de Matos.
Na pandemia e no “meio de um pandemónio”
Gaspar Matos, chefe da divisão de bibliotecas e equipamentos culturais da Câmara Municipal de Oeiras, narrou a “aventura” que deu início ao desbravar de um “importantíssimo acervo sonoro” que estava “amontoado” entre as “pilhas de caixotes que iam até ao teto” da casa de Igrejas Caeiro, em Caxias.
O responsável, que também pertence à Fundação, explicou que as equipas do Município foram surpreendidas pela quantidade de material encontrado. “A reorganização da casa (de Igrejas Caeiro) foi iniciada durante a pandemia e lá dentro encontrámos um verdadeiro pandemónio.
Eram caixotes até [ao] teto, caixotes e caixotes a perder de vista. O que fizemos? Fomos catalogando, catalogando, até encontrarmos 6326 discos e mais de 7 mil livros…”
Gaspar Matos revelou que, entre os caixotes, foram encontrados uns discos “estranhos”, sem capa, e com etiquetas manuscritas. Entre eles, destacava-se um disco “enorme, maior do que uma pizza familiar”.
Passagem para o Arquivo Nacional de Som
O enorme achado sonoro, explicou o responsável, foi colocado à consignação do Colégio da Fundação Marquês de Pombal, pois não havia “competências internas” para tratar das descobertas encontradas na casa do radialista. A Fundação procuraria então a ajuda do Arquivo Nacional de Som, que tomaria em mãos a tarefa de “escavar” na descoberta do espólio.
Gaspar Matos referiu ainda que a tarefa “mais fácil” do descortinar do espólio da casa de Igrejas Caeiro foi a organização da biblioteca. E, mesmo assim, “demorou 5 anos”.
Achados inéditos e relíquias
Pedro Félix é antropólogo e investigador do Instituto de Etnomusicologia – Centro de Estudos em Música e Dança da Universidade Nova de Lisboa (FCSH) e coordenador do Arquivo Nacional de Som. O perito também se mostrou “surpreendido” com a quantidade de discos encontrados. “Uma coleção média de um particular ronda os mil exemplares. A coleção de Igrejas Caeiro tem mais [de] 6 mil discos”.
E não é só na quantidade que o radialista investia, diz Pedro Félix. “Na primeira visita que fizemos à Casa saltaram-nos [à] atenção os discos sem etiquetas, com envelopes de papel de cera. Eram discos instantâneos, que são os suportes de discos mais frágeis, e que são gravações únicas”, isto é, sem cópias em qualquer formato. “Encontrámos a segunda maior coleção de discos instantâneos do país, quase 500, com gravações de programas de rádio, como os ‘Companheiros da Alegria’”, entre outros.
Pedro Félix revelou que, dentre a relíquia sonora de discos instantâneos, foram descobertas três gravações originais, provavelmente para promoção dos artistas no estrangeiro, como as gravações inéditas de Amália Rodrigues e de Tony de Matos. Um dos discos continha a gravação de duas faixas inéditas com a voz da diva do fado. Tratar-se-iam de duas marchas alusivas às comemorações do Santo António: a marcha de Alcântara, em que Amália executa uma canção “algo quadrada”, mas a outra, a marcha de Santo António, “é uma interpretação absolutamente extraordinária”, sublinha o perito.
Ambas as marchas tocaram durante a apresentação, pondo alguns dos presentes a “bater o pé” ou a cantarolar de alegria, sabendo que estavam a presenciar um acontecimento cultural histórico ímpar.
Canção de Tony de Matos “justifica” investigação
Também uma canção de amor de Tony de Matos foi passada durante a reunião. Pela voz bem calibrada e de timbre cristalino do cantor romântico, faz pressupor que Tony de Matos ainda estaria a dar os primeiros passos na sua longa e bem-sucedida carreira, mas a canção trouxe um manto de melancolia à sala, com alguns a olhar pela janela, quiçá, recordando algum desgosto de amor.
Depois de se escutar a canção, Pedro Félix assumiu que, dada a qualidade de produção, bem como a nota manuscrita do estúdio, pressupunha a produção de um disco, mas o que é certo é que essa gravação ficaria “esquecida” entre uma “montanha” do acervo sonoro de Igrejas Caeiro.
“Só a descoberta deste tema de Tony de Matos já justificava a nossa investigação. Mas tudo o resto que foi descoberto faz um importante retrato da indústria da rádio e do espetáculo no século XX em Portugal”.
Para o investigador do Arquivo Nacional do Som, a coleção de Igrejas Caeiro estava enclausurada no tempo, mas, agora, vai passar a fazer parte da História da fonográfica de Portugal.
Finalização da catalogação do espólio
O presidente do conselho de administração da Fundação Marquês de Pombal, Nélson Pires, revelou que o dia 13 de maio, para além de ser o dia de aniversário da Fundação, é motivo para celebração redobrada, uma vez que, nesse dia, a instituição finalizou a catalogação do espólio de Igrejas Caeiro, esse “grande homem” do concelho de Oeiras que deixou um legado único à Fundação.
Nélson Pires aproveitou a iniciativa para fazer o balanço sobre a vida da Fundação neste ano, em que cumpre 33 anos. Nélson Pires explicou que a instituição pauta a sua atividade pela responsabilidade social, apoiando “80 crianças diariamente”, mas também pelo apoio ao empreendedorismo, revelando que a instituição alberga mais de meia centena de empresários que trabalham no Parque de Ateliers na Quinta do Salles, que vai ser renovado.
“O Parque de Ateliers acolhe mais de 50 microempresários, que pagam metade do valor de mercado das rendas. Muitos deles, provavelmente, não conseguiriam estar no mercado se tivessem que pagar uma renda fora do Parque. Sendo nós uma fundação, entendemos que devemos ajudar e acompanhar a vida de Oeiras”.
O responsável adiantou que a Fundação vai avançar com duas novidades ainda este ano: o lançamento de uma biblioteca na casa Alexandre Gusmão e o Prémio Cultural Igrejas Caeiro, que “era um desejo do fundador desta casa”.