A EGEAC/Lisboa Cultura está a organizar o ciclo de conversas ‘As Coletividades e as Marchas’, na qual pretende dar conhecer um pouco dos bastidores deste universo. A primeira conversa aconteceu na última terça-feira, 29 de abril, e juntou algumas das marchas vencedoras dos últimos 25 anos, que, em conjunto, trouxeram para o debate algumas questões pertinentes sobre o processo de construção de uma marcha.
As Marchas Populares de Lisboa são uma marca identitária e cultural da cidade, que vão muito além do desfile na Avenida da Liberdade na noite de 12 para 13 de junho e das exibições no pavilhão. Para dar visibilidade ao trabalho de bastidores desenvolvido pelas coletividades dos bairros lisboetas, o Museu de Lisboa – Santo António está a organizar, até setembro, o ciclo de conversas ‘As Coletividades e as Marchas’. A primeira conversa aconteceu na última terça-feira, 29 de abril, e juntou quatro representantes de quatro marchas vencedoras dos últimos 25 anos – Alcântara, Bica, Marvila e Castelo. Todos os intervenientes destacaram o “trabalho e a dedicação” dos marchantes, que defendem os seus bairros como ninguém e ajudam a manter viva a tradição.
“A vitória é a recompensa das horas não descansadas, e do sacrifício que os marchantes fazem em prol de querer representar o seu bairro”, sublinhou David Ferreira, coordenador da Marcha de Alcântara, vencedora de 2024. Na óptica de Tânia Rodrigues, coordenadora da Marcha do Castelo, as marchas representam a essência “das nossas gentes”, pelo que é importante incentivar a participação no concurso, o que ganha uma importância especial nos dias que correm, uma vez que “a marcha tem cada vez menos pessoas residentes no bairro”. “Temos que puxar as pessoas de fora e fazê-los viver o bairro”, reforçou. Para Pedro Duarte, coordenador da Marcha da Bica, “a vitória acaba por ajudar a trazer mais pessoas para a marcha e é importante continuarmos a fazer com que os mais novos não abandonem esta dinâmica”, referindo ainda a importância de haver uma “renovação” das equipas, opinião esta também defendida por Tânia Rodrigues.
Preparar uma marcha começa um ano antes
Ao contrário da Bica e do Castelo, sustentadas sobretudo por marchantes que residem fora de Lisboa, “Alcântara ainda mantém as suas gentes”, explicou David Ferreira, que, tal como Marco Silva, da Marcha de Marvila, considera que as marchas são uma tradição que passa de geração em geração. Nesta tertúlia, que aconteceu no Museu de Lisboa – Santo António, foi ainda abordada a questão do tempo que é necessário a preparar uma marcha. Segundo o coordenador da Marcha de Alcântara, os preparativos começam assim que o concurso termina, sendo que, no caso da Bica, a preparação demora sempre mais um pouco a começar.
“Nós, marchantes da Bica, também participamos nas marchas em Almada e isso é problemático, porque acabamos por abrandar o ritmo aqui em Lisboa e só conseguimos iniciar os preparativos em setembro. Depois, temos ainda outro problema, que é o facto de o Dino Alves [figurinista] só começar a trabalhar para nós após a Moda Lisboa [que acontece no início de outubro]”. Já nos casos do Castelo e de Marvila, os preparativos também começam logo assim que termina uma edição das Marchas Populares. “Gostamos de avaliar primeiro o que correu bem e o que correu mal, para melhorarmos para a edição seguinte”, referiu Tânia Rodrigues.
Sucesso deve-se ao esforço e dedicação de todos os intervenientes
Em Marvila, a preparação da marcha começa com “a definição de quem queremos manter ao nosso lado na nova edição. Por exemplo, posso afirmar que o Paulo Miranda [figurinista e cenógrafo] irá continuar conosco não apenas na edição deste ano, mas também nas futuras”. Só desta forma é que é possível ir apresentando um trabalho de qualidade ano após ano, considera o responsável da Marcha de Marvila, que, em 2024, conquistou o segundo lugar no concurso. No entanto, reforçaram ainda os quatro coordenadores, “a grande parte das pessoas que colabora com as marchas trabalha em regime de voluntariado”, o que traz desafios acrescidos à preparação de uma marcha.
Regulamento devia ser mais explícito, defendem coordenadores
Por outro lado, outro desafio passa ainda pelas alterações ao regulamento, que suscita, por vezes, algumas dúvidas. “Tentamos sempre não errar, mas às vezes as penalizações são tão latas, que podem ser interpretadas de várias formas e muitas vezes não são compreendidas por nós”, vincou Pedro Duarte, referindo-se ainda às alterações de 2018. Estas alterações, a seu ver, não foram bem compreendidas pelos organizadores de cada marcha e contribuíram para prejudicar a classifição final daquele ano, ideia que foi refutada por Pedro Moreira, presidente da EGEAC/Lisboa Cultura, que respondeu ao coordenador da Marcha da Bica a dizer que, naquele ano, “era necessário rever alguns elementos”.
“Estas mudanças foram feitas sem consultar a organização de cada marcha”, reforçou ainda Marco Silva, considerando que as alterações ao regulamento devem ser feitas tendo por base as opiniões dos responsáveis de cada marcha. “Os regulamentos devem ser mais explícitos”, disse, por sua vez, Tânia Rodrigues, reforçando que, de ano para ano, as penalizações não são unânimes, pois “num ano o júri repara numa coisa que, no ano a seguir, já nem repara”, ideia que foi igualmente partilhada por Pedro Duarte, que falou ainda na necessidade de haver “idoneidade” entre os jurados. “Não se pode ter no júri uma pessoa que vai avaliar figurinos e que é figurinista numa marcha, por exemplo, e isso ainda acontece”.
Vencer o concurso é “uma sensação indescritível”
Por outro lado, na perspetiva de Marco Silva, “o júri, atualmente, está mais preparado para avaliar marchas populares do que no passado”. O coordenador da Marcha de Marvila referiu ainda que “a nossa marcha apresenta-se uma forma muito digna e positiva. Vivemos muito as marchas e temos sempre pessoas interessadas em entrar na marcha, apesar de já não ganharmos há 17 anos”. Para David Ferreira, “vencer as marchas é uma sensação única e todos os bairros deviam experimentar esta sensação. Posso dizer que, no ano passado, o meu dia começou às oito horas da manhã do dia 12 e só terminou no dia 14, tal era a emoção de termos ganho”.
Pedro Duarte concordou com as palavras do coordenador da Marcha de Alcântara, mas criticou o facto de “haver muitos marchantes que não vestem a camisola”, comentário que foi julgado por Tânia Rodrigues, que não concorda que os marchantes devam ser naturais do Castelo para representar este bairro. “Nós temos três marchantes que não são do Castelo, estão conosco porque gostam das marchas e porque não foram aceites nas marchas dos seus bairros”, respondeu. Esta conversa contou ainda com uma intervenção de Pedro Moreira, que reforçou o papel e a importância das marchas como um “ícone da cidade, e que têm um significado muito intenso, pois as marchas é o mais genuíno que Lisboa tem”.
Trocar experiências entre os vários bairros
A segunda tertúlia, intitulada ‘Ensaiadores e Coreógrafos’, acontece já no dia 16 de maio, pelas 18h30, também no Museu de Santo António. “Este foi um desafio lançado pelo Museu de Lisboa, para que, de alguma forma, se possa dar a conhecer as marchas populares nas várias vertentes, ou seja, é uma troca de experiências e de sentimentos. Queremos dar a conhecer melhor a realidade da organização das marchas populares, é um desafio muito aliciante e que as organizações das marchas prontamente responderam”, disse o presidente da EGEAC/Lisboa Cultura, no final da tertúlia, ao Olhares de Lisboa. “Esta iniciativa é também importante para partilhar sentimentos e dificuldades, e melhorar alguns pressupostos ligados à organização das marchas populares”, referiu ainda Pedro Moreira.
Na visão de Tânia Rodrigues, participar nesta iniciativa “foi uma experiência muito boa, com muita aprendizagem, porque sendo a coordenadora mais recente no mundo das marchas, consigo aprender muito. É um privilégio estar aqui. Trocamos bastantes experiências, e formas diferentes de trabalhar”. Já Marco Silva, esta conversa foi, essencialmente, “uma partilha. Contamos as nossas histórias, as histórias dos nossos colegas, e em conjunto, aprendemos. Marvila já ganhou seis vezes, ficou muitas vezes em segundo lugar e tem apresentado muita qualidade nos seus trabalhos. Já partilhámos estas histórias entre nós, e considero que esta iniciativa é importante para as pessoas que nos vêm ouvir, porque conseguimos dar a conhecer o outro lado. As pessoas ainda não têm conhecimento de como funciona uma marcha e da planificação que ela exige”.
Concorrentes sim, mas com muita entreajuda entre todos
Para Pedro Duarte, coordenador da Bica, “foi óptimo participar nesta conversa, trouxemos um pouco da nossa experiência, mas também dos nossos colegas que não estavam presentes, bem como partilhar o nosso conhecimento”. David Ferreira, de Alcântara, considerou “que foi uma conversa bastante produtiva, até porque há pessoas que pensam que a marcha é só sair à rua, e envolve um processo demorado”. “Nós somos concorrentes, todos queremos que a nossa marcha ganhe, mas há realmente um apoio entre todos, eu dei o exemplo que, há dois anos, precisámos de um Santo António, e foi a Marcha do Castelo que nos emprestou um Santo António”.
“Da mesma forma que nós já ajudámos outras marchas com materiais”, referiu o coordenador da Marcha da Bica, vencedora de 2023, e que, no ano passado, passou o título a Alcântara. “Foi um título bem entregue, e acho que o processo de ganhar é um sermos também consistentes ano após ano”. David Ferreira descreveu a vitória do seu bairro, a primeira em mais de 80 anos de participações, como “uma sensação indescritível, até porque, tal como o Bairro Alto, erámos das poucas marchas que, desde 1932, nunca tinha ganho”.
Museu das Marchas poderá ser uma realidade a “médio prazo”
O coordenador da Bica deu ainda a sugestão da criação de um Museu das Marchas, “porque temos de perpetuar toda esta história. Há marchas com um espólio enorme que não pode ser desperdiçado, somos parte da cultura da cidade, e entendemos que já demos um passo enorme, com a classificação das Marchas Populares como Património Cultural Imaterial, e o museu era o culminar”.
Para Pedro Moreira, “já há muito tempo que se fala nesta ideia, mas a constituição de um museu não é fácil, porque temos que encontrar um espaço e desenvolver um trabalho científico que permita um layout museográfico, mas sabemos que, a médio prazo, será necessário, porque não podemos perder toda esta história que já vem de 1932, e é uma cultura popular que tem de ser valorizada, porque ela diz respeito a toda a cidade e é algo que distingue a cidade. É um dos produtos que permite divulgar e catapultar a cultura de Lisboa ao nível nacional e internacional”.