A EGEAC/Lisboa Cultura está a promover o ciclo de conversas ‘As Coletividades e as Marchas’, onde membros ligados à organização e produção das Marchas Populares são convidados a trocarem experiências. O segundo encontro decorreu nesta sexta-feira, 16 de maio, com a presença dos ensaiadores de Marvila, Alfama e Bairro Alto.
O ciclo de conversas ‘As Coletividades e as Marchas’ decorre entre abril e outubro no Museu de Lisboa/Santo António, e depois da primeira edição, com o tema ‘Como se Faz um Vencedor’, aconteceu, esta sexta-feira, 16 de maio, a segunda conversa, que versou sobre o tema ‘Ensaiadores e Coreógrafos’. Para esta tertúlia, foram convidados quatro ensaiadores: Paulo Jesus (Marchas da Santa Casa e Marvila), Vanessa Rocha (Alfama), Carla Fonseca e Dino Carvalho (Bairro Alto), que partilharam a sua visão sobre como se ensaia uma marcha popular. Todos os participantes sublinharam que é preciso ter “amor à camisola” para integrar e preparar uma marcha popular, que envolve muitas horas de trabalho.
“A parte mais desafiante é gerir um grupo de 50 pessoas, as emoções e os estados de espírito”, referiu Carla Fonseca. Paulo Jesus referiu ter “uma boa relação com os marchantes, mesmo com aqueles que estão zangados comigo. A minha relação é igual com todos”. Já Vanessa Rocha reiterou as palavras dos seus colegas, acrescentando que “há anos em que há grupos [de marchantes] mais fáceis que outros. Em 2023, saíram 11 mulheres que faziam parte da marcha há muitos anos, e que foram substituídas por 11 miúdas. Isto foi um desafio, na medida em que não as conhecíamos, mas correu muito bem, até porque é preciso haver uma renovação. Este ano, aconteceu o mesmo com os homens e está a correr muito bem”.
“Nós, no Bairro Alto, perdemos 13 homens este ano”, referiu, por sua vez, Dino Carvalho, lembrando ainda que, ano após ano, e em especial nos bairros típicos da cidade, “há cada vez menos locais”. Por isso é que, na sua visão, é importante “incentivar os miúdos do bairro” a gostarem desta tradição, “senão começa-se a perder”.
Um dos desafios dos ensaiadores e saber lidar com os egos
Quando questionado sobre como é gerir os egos dos marchantes, o ensaiador da Marcha do Bairro Alto reforçou que a parte “mais díficil é precisamente saber gerir os egos”. Na sua perspetiva, existem muito egos elevados dentro de um grupo de marchantes, e, por isso, “deve haver rotatividade entre os elementos, ou seja, os que estão na frente de marcha no ano a seguir devem ir para trás e os de trás devem ter a experiência de estar na frente, para sentir o peso do público”. Já Vanessa Rocha e Paulo Jesus não concordaram com a visão do ensaiador do Bairro Alto, pois, na perspetiva da ensaiadora de Alfama, “também é preciso segurar a marcha atrás, e muitos dos que estão que estão na parte de trás são da minha confiança”.
Paulo Jesus acrescentou que, no caso da Marcha da Santa Casa, o grupo é organizado de forma alternada, ou seja, “uma fila de homens e uma fila de mulheres. Quero ser o mais justo possível, até porque quero fazer com que aquelas pessoas, que têm muitos problemas, se sintam normais. São pessoas que estão a ter uma oportunidade”. Outro assunto abordado foi ainda a evolução que tem havido na apresentação das Marchas Populares, que deixaram de ser vistas como algo ‘popular’ para um espetáculo, o que muito se deveu à entrada de elementos ligados ao teatro, como Carlos Mendonça.
Várias evoluções ao longos dos anos
“Nos anos 90, o Carlos Mendonça trouxe o teatro para as marchas. A partir daí, começou-se a usar o passo do teatro, as lantejoulas, entre outros elementos”, referiu Vanessa Rocha, lembrando que, a seguir, houve mais evoluções, com o [Bruno] Vidal, que está ligado à televisão e ajudou a mudar o ‘chip’ das marchas, ou agora mais recentemente com o [Marco] Mercier, ensaiador da Bica, e que faz um espetáculo excepcional”. A ensaiadora da Marcha de Alfama ressalvou ainda que, há 30 anos, havia um certo preconceito com as Marchas Populares dentro do meio artístico, dando ainda como exemplo Carlos Mendonça, que “perdeu muitos trabalhos por se assumir ensaiador da Marcha de Alfama”.
Para Paulo Jesus, natural do Porto, não é fundamental ser-se daquele bairro para se fazer um bom trabalho, mas “é uma mais-valia”. “Quem consegue ensaiar a mesma marcha durante 20 ou 30 anos seguidos tem de ser genial”, acrescentou. Já para Carla Fonseca, “o resultado do nosso trabalho depende da forma como ele é recebido pelo grupo”. O processo criativo, acrescentou Dino Carvalho, começa com a discussão de várias ideias, que são juntadas e depois analisadas até se chegar a um consenso, sempre a par “com os coreógrafos, cenógrafos”, e demais elementos.
Em Alfama, o processo “é diferente”, referiu Vanessa Rocha. “O nosso coordenador, o João Ramos, lança um tema, fala com a restante organização e aí decide-se o que se vai fazer. Sou das últimas pessoas a ver tudo e a dar a minha opinião. Mas nós já temos uma máquina montada há muitos anos”, referiu.
Regulamento não é claro, considera ensaiador do Bairro Alto
Por outro lado, em Marvila, o processo é semelhante ao do Bairro Alto, sendo que as primeiras ideias começam a ser desenhadas logo na primeira reunião da marcha, em setembro. “Gosto de controlar todo o processo”, acrescentou o ensaiador, que vai juntando todas as ideias que lhe vão surgindo até ter o resultado final da coreografia. “Para nós, a parte mais fácil é o desenvolvimento das ideias, o mais difícil é criar os pontos altos da exibição, aqueles que entusiasmam o público”, disse, por sua vez, Dino Carvalho, ressalvando que a definição das marcações é a parte mais fácil do processo de ensaiar uma marcha.
Também a presença dos padrinhos nas coreografias das marchas foi outro dos pontos abordados nesta tertúlia. Carla Fonseca revelou que “gosta de ver os padrinhos e os mascotes integrados nas coreografias”, opinião que não foi defendida por Paulo Jesus, que prefere que os marchantes tenham o destaque principal. “Gosto de ver [a presença deles] como um apontamento, não como integrantes da coreografia”, defendeu o ensaiador de Marvila, que faz uma excepção aos padrinhos que “participam nos ensaios, e se entregam à marcha, como por exemplo a Raquel Tavares (Alfama)”. Sobre o regulamento, os quatro participantes admitiram que pode ser limitador de algumas ideias. Dino Carvalho considera que o regulamento deveria ser mais explícito, uma vez que “tem muitas interpretações”.
Ciclo de conversas sobre as Marchas decorre até 9 de outubro
“Por exemplo, porque é que temos de sair a interpretar a Grande Marcha? Porque é que não podemos interpretá-la no início ou no meio, conforme a nossa escolha?”, questionou-se, por sua vez, Carla Fonseca, considerando que esta regra torna-se “cansativa” para quem assiste. Já sobre o júri, Paulo Jesus disse que aceita as decisões do mesmo, “pois há sempre quem goste e quem não goste. Estamos a falar de um conjunto de pessoas, de várias áreas, que têm opiniões diferentes”, opinião reiterada por Vanessa Rocha. O ciclo de conversas ‘As Coletividades e as Marchas’ decorre até 9 de outubro, e a terceira conversa está marcada para 26 de junho, sobre o tema ‘Os Bairros’.