Passaram fome juntos, presenciaram atrocidades, apanharam vários sustos, viveram no meio de bombardeamentos constantes. Ex-capacetes azuis da ONU foram os primeiros agentes da PSP portuguesa a integrar uma missão da ONU. 33 anos depois, reuniram-se para partilhar as histórias vividas na guerra da ex-Jugoslávia e noutros pontos “complicados” do planeta.
O contingente da Polícia de Segurança Pública que participou na United Nations Protection Force (UNPROFOR), em 1992, na ex-Jugoslávia, esteve reunido numa confraternização em Lisboa. O grupo, que contou com a participação de polícias que vieram de todo o país, realizou o primeiro encontro comemorativo dos 33 anos da primeira participação da PSP de Portugal numa missão de paz das Organizações das Nações Unidas (ONU), num restaurante de Lisboa, no miradouro do Castelo.
O encontro contou com o Diretor Nacional da PSP, superintendente Luís Carrilho, o superintendente Costa e Sousa, o comandante do contingente da PSP na missão, bem como de praticamente todos os elementos do contingente português que inaugurou as missões portuguesas ao serviço da ONU nos quatro cantos do mundo.
Os organizadores do encontro, Bernardo Pedrosa e Luís Santos, partilharam “esta experiência de vida” durante um ano. Ambos destacados nas terras eslavas da chamada Kraina, viveram várias situações de aperto, mas também experiências de camaradagem somente possíveis a quem se presta a largar a sua zona de conforto para ir parar a um dos conflitos mais fratricidas da história recente da Europa, a guerra da ex-Jugoslávia.
Polícias sem armas
O chefe Bernardo Pedrosa explica ao “Olhares de Lisboa” que a iniciativa de organizar este encontro partiu da vontade de “juntar todos os camaradas” para reviverem as histórias ocorridas na ex-Jugolávia.“Foi a primeira vez que a polícia portuguesa participou numa missão da ONU. Como nunca tínhamos tido a oportunidade de juntar o grupo, organizámos este encontro de camaradas. Convocámos todos eles que participaram nas missões, mas, infelizmente, alguns já faleceram”, lamenta.
Bernardo Pedrosa relata os objetivos da missão. “Fomos monitorizar e ajudar a polícia local. Foi a primeira missão da ONU em que fomos fardados, com a boina da ONU, mas desarmados, o que não foi nada fácil para nós, que tínhamos o hábito de andarmos com as armas de serviço.
Houve alguns elementos que não puderam estar presentes, pois estão muito doentes e não conseguiram participar, mas é curioso que todo o espírito de corpo e de união se mantém em todos”.
Luís Santos, oficial da PSP, no ex-território da Kraina (Macedónia) e em Sarajevo, entre 1992 e 1993. “É engraçado que estava a recordar que a última vez que nos reunimos foi em Zagreb no mítico 1992, no National Day, que era o dia em que podíamos estar todos juntos”, recorda.
Sustos e outras histórias
Questionado sobre os sustos ou situações mais complicadas ocorridas nas missões ao serviço da ONU, Luís Santos responde prontamente: “Várias. Recordo uma história do dia em que cheguei a Sarajevo. Era o único português. Era dia de Páscoa e eu tinha a última ração de combate para comer… vi-me sozinho, sem comida, no meio de bombardeamentos, que eram diários”.
Mas, por ironia do destino, encontrou um graduado da Legião Estrangeira (França), que era a força que patrulhava o aeroporto. O referido oficial da Legião perguntou-lhe a nacionalidade, em língua portuguesa. “A partir daí, nunca mais passei fome, porque o legionário era português”.
Graças a esse encontro entre dois portugueses no meio do caos, “acabou-se o longo período, de 4 meses, em que passei fome e em que tinha que racionar ao máximo a pouca comida que me restava”, conta, sorrindo.
Os bravos do pelotão
Bernardo Pedrosa é o polícia português mais condecorado de sempre. Recebeu a Medalha de Mérito de Segurança Pública, a Medalha de Prata de Mérito de Segurança Pública, bem como 6 louvores nacionais e 4 internacionais. Esta bravura na defesa do dever, foi posta à prova várias vezes na ex-Jugoslávia, com experiências que irá recordar até ao fim dos seus dias.
“Logo nos primeiros dias da missão, fomos alertados que andava um indivíduo a vaguear pelas ruas, debaixo de bombardeamentos. O homem tinha os globos oculares fora das órbitas, pendendo-lhe na cara, e tentava caminhar aos apalpões no meio da rua. Ficámos chocados com a situação daquele pobre homem”. Foi o primeiro embate com aquela realidade dantesca.
Enquanto chefe das Brigadas Anti-Crime da PSP de Lisboa, Bernardo Pedrosa viveu situações “muito complicadas”, mas admite que não estava preparado para ver os horrores de uma guerra de ódio elevada ao extremo.
“A guerra da ex-Jugoslávia foi muito dura e em que pudemos observar o ódio visceral entre as várias partes do conflito. Não foi fácil verificarmos a existência de tanto ódio entre eles. Acho que, ainda hoje, o problema do restabelecimento efetivo da paz e do enterrar do ódio não está bem resolvido”, refere o agente de autoridade.
O chefe Bernardo conheceu o verdadeiro lado negro do ser humano. A maldade atroz, já se sabe, vem ao de cima nas guerras e o polícia pôde constatar “in loco” que os crimes de guerra eram perpetrados a toda a hora. “Fiquei muito marcado por ter visto pessoas completamente carbonizadas, só por serem croatas e estarem a viver em território que a outra parte não considerava ser deles.
Lembro-me que algumas delas eram pessoas idosas, que não se conseguiam movimentar para território croata, e que ficaram ali por já terem nascido naquelas terras e não queriam abandonar as suas casas. Algumas dessas pessoas, com quem mantínhamos contacto, acabaram por ser assassinadas e queimadas”.
Bernardo Pedrosa assume que há “coisas” ocorridas naquela guerra que nunca mais esquecerá. “A ONU entrou naquele território numa altura muito complicada. Quando lá cheguei, havia muitas casas a arder, pessoas a serem mortas de forma indiscriminada. O último episódio a que assisti, e que me chocou particularmente, foi o caso de uma intervenção que fizemos, numa zona de quase floresta, em que tinha havido uma explosão.
Deparámo-nos com um homem com a parte abdominal e os genitais completamente destruídos. Tinham atado a vítima com umas cordas, com uma granada sem cavilha. Ao perder as forças, o homem deixou cair a granada e explodiu-lhe na zona da barriga. Ainda o levámos para o hospital, mas não conseguiram salvá-lo”.
Para além de que, a casa onde estavam, desde a primeira hora, estava no meio da linha de fogo dos morteiros, “que passavam por cima de nós”. Era uma situação que “nos deixava com o coração nas mãos porque não sabíamos se iríamos ser atingidos por algum daqueles morteiros”.
Recorda, também, um episódio em que esteve à beira da morte por causa da situação surrealista de um cenário de guerra, que opunha “vizinhos contra vizinhos”. Certo dia, “resolvi tomar um banho num dos rios, com água gelada. Perdi os sentidos no meio da água … (emociona-se) e tive de me agarrar a uns ramos para me salvar.
Eu e um colega estávamos a caminho de uma padaria e encontrámos um homem cheio de carregadores e munições de guerra, que nós já conhecíamos da zona. Convidou-nos para beber um café e aceitámos. Fomos com ele e, quando chegámos ao local, o homem ofereceu-nos uns cálices de brandy feito por eles. Bebi o primeiro, ainda em jejum, e aquilo não me caiu nada bem. Disse ao meu colega para irmos embora, mas o anfitrião insistiu em bebermos mais um brandy, que bebemos por cortesia.
O homem disse-nos que estávamos a brindar pela Kraina, e contra a minha vontade, bebemos aquela mistela. Tínhamos combinado com uns colegas polacos comer qualquer coisa (pão) e que depois iríamos dar um mergulho no rio. Assim foi, atirei-me para o meio da água com uma corda que estava presa e, como a água estava gelada, perdi os sentidos; talvez por causa do álcool ingerido. Só me lembrei de pensar a minha filha (de 5 anos) e na minha mulher. E foi isso que me deu forças para me agarrar a uns ramos e raízes para ir para a margem. Chamei pelos meus colegas e foram eles que me retiraram do rio…”
Comandante de 1640 capacetes azuis
O superintendente Costa e Sousa, o comandante do contingente da PSP na UNPROFOR, enaltece o objetivo desta reunião, que celebra a primeira missão da ONU em que Portugal também participou, mas lembra que a missão das Nações Unidas, “não foi de paz, porque havia guerra. Este conflito só acabou em fins de 1995, com os acordos de Dayton. A partir desse momento, pôde chamar-se de missão de manutenção de paz”, explica.
Costa e Sousa explica que, na primeira missão da UNPROFOR, era intendente da PSP, oriundo da Academia Militar, depois de ter participado nas guerras coloniais, integrou a PSP com o posto de intendente. “A minha carreira na ONU é relativamente longa. Na primeira missão, que foi na ex-Jugoslávia, fui voluntário. Fui comandar o primeiro contingente da ONU naquele território, tal como o segundo, porque não apareceu nenhum oficial que se voluntariasse para comandar o segundo contingente”, anota.
O veterano da PSP e do exército participou em outras missões da ONU. “Fui o comandante da Polícia Internacional em Timor-Leste. Na altura, estava destacado como chefe de segurança da Presidência da República, do Dr. Jorge Sampaio, e fui convidado para ir para Timor. Estive lá entre 2000 e 2001”, recorda.
A realidade sociopolítica encontrada em Timor-Leste terá sido, também, “complicada”. “Politicamente, era uma situação complexa. É difícil de falar publicamente disso, porque nós temos de manter uma narrativa politicamente correta. Tivemos lá dificuldades, não eu pessoalmente, mas a ONU enquanto força internacional.
A força de polícia tinha 1640 agentes de 45 nacionalidades diferentes. O senhor está a imaginar comandar uma força com homens de 45 nacionalidades? Os EUA tinham 90 polícias, a Jordânia tinha 90 homens, a China tinha 80 e tal polícias, mas havia Timor, que tinha 4 agentes. Até apareceram pessoas de países de que nunca tinha ouvido falar, como Vanuatu (Oceânia)…”
Luís Santos pede desculpa e interrompe a entrevista, para recordar o orgulho de “andar com a bandeira de Portugal ao peito”, e refere que na segunda missão, também na ex-Jugoslávia, os agentes da PSP portugueses, mesmo os não graduados, “iam diretamente para comandantes de esquadra. “Vejam bem o salto e a mutação do serviço por nós demonstrado”, porque a ONU “reconheceu rapidamente o nosso trabalho” e “quis premiar o nosso empenho e profissionalismo”.
“Havia oficiais de outros países, capitães e tenentes, que estavam às ordens de guardas (“praças”) portugueses, porque a ONU percebeu rapidamente a capacidade de liderança dos polícias portugueses”, concorda Bernardo Pedrosa.
A ONU continua a “fazer todo o sentido”.
Para Santos e Costa, a situação da ONU nos dias de hoje continua a “fazer todo o sentido”. O comandante defende que, dada a situação geoestratégica atual, a ONU continua a ter um papel determinante para mediar os conflitos no mundo.
Para além de ter liderado contingentes internacionais de polícias pelo mundo, o comandante é ex-combatente da guerra do Ultramar. Foi oficial dos paraquedistas e participou em 66 operações em teatros de guerra de Angola e Moçambique.
Por conhecer bem aquilo que significa “andar na guerra”, defende a necessidade de se encontrarem pontes de diálogo entre os países beligerantes, até porque “ninguém sabe se a guerra da Ucrânia não irá desencadear a 3ª Guerra Mundial”.
Pelo quadro apresentado, o oficial sublinha ser essencial “apostar na ONU” como uma organização “capaz de resolver a conflitualidade que existe hoje entre as grandes superpotências do mundo”, pois “há hoje um conflito, por enquanto apenas económico, entre a China e os Estados Unidos”.
“Ucânia é palco de guerra da NATO”
Por outro lado, “temos um conflito que envolve a Rússia e a Ucrânia, mas em que a Rússia consegue dialogar com os americanos; temos a Índia, que é já uma superpotência militar.
Em suma, há conflitualidade, latente e real, que tem necessariamente de ser resolvida. É que, de facto, os EUA são hegemónicos desde 1992, data em que a União Soviética e a Jugoslávia colapsaram. Passámos de uma realidade geopolítica em que os Estados Unidos e a Rússia dividiram o mundo em dois blocos, para uma realidade em que os americanos dominam o globo.
A Rússia tentou integrar-se na União Europeia, não conseguindo esse objetivo, a China começou a desenvolver-se a nível tecnológico e financeiro, associando-se com a Rússia. Ambas as potências fundaram os BRICS. E essa conflitualidade (entre os EUA e os BRICS) está a fazer perigar a paz no mundo, segundo Costa e Sousa.
Para o veterano da ONU, a guerra na Ucrânia “tem pouco a ver com o próprio país”. A Ucrânia “é um teatro de guerra”, de “carne para canhão”, mas “quem está, de facto, em guerra dentro da Ucrânia é a NATO, os EUA e o chamado mundo ocidental contra a Rússia e alguns aliados seus.
O Vladimir Putin continua a apostar no papel da ONU como agente ativo, com plenos direitos, para tentar mediar os interesses de todas estas potências que atuam na Ucrânia, para tentar encontrar soluções de paz no globo. Acho que a ONU mantém plena legitimidade”.
250 mil mortos
Estima-se que o número de mortos na guerra da ex-Jugoslávia ronde as 250 mil pessoas, incluindo civis e militares. O conflito, que ocorreu entre 1991 e 1995, resultou na dissolução da República Socialista Federativa da Jugoslávia, criada pelo general Tito, mas implodiu depois do colapso da ex-União Soviética e de todo o Bloco de Leste.
A ONU considerou que o conflito étnico ficou manchado pela ocorrência de vários crimes de guerra, criando o Tribunal Penal Internacional para a ex-Jugoslávia para julgar estes casos de crimes contra a humanidade.
Desde a sua fundação, o Tribunal Penal Internacional da ex-Jugoslávia indiciou 161 pessoas, das quais 90 foram condenadas, sendo que 56 já cumpriram a pena. Em 2006, o órgão retirou a acusação ao ex-presidente da Sérvia, Slobodan Milosevic, o primeiro chefe de Estado a ser detido e julgado pela justiça internacional por crimes de guerra.
Já o ex-líder Radovan Karadzic foi condenado, em 2016, a 40 anos de prisão, também por genocídio e crimes contra a humanidade ocorridos na Bósnia e Herzegovina entre 1992 e 1995.