A Freguesia da Misericórdia está a braços com um clima de insegurança generalizada causada pela desregulação dos (novos) bares low-cost que operam na noite do Bairro Alto e Cais do Sodré.
A Freguesia da Misericórdia é um dos territórios mais movimentados da cidade de Lisboa. Alberga zonas que, desde sempre, foram o centro noctívago da capital.
Há alguns anos, o Bairro Alto era o local da “movida” alfacinha por excelência. O Bairro estava associado a uma certa ideia de boémia, da vida noturna, das redações dos jornais, dos restaurantes mais requintados (O Tavares, o Papa’Açorda, o 100 Maneiras), às tascas, os restaurantes tradicionais (1º de Maio, Alfaia, o Sinal Vermelho) e as casas de fado (O Luso, A Tasca do Chico, A Adega Machado) que deram fama ao Bairro.
Esta oferta gastronómica, combinada com a existência de bares e discotecas como o Frágil, faziam do Bairro Alto o ponto de referência boémia da cidade.
Hoje, o Bairro Alto continua a ser um dos bairros mais vibrantes e culturalmente ricos de Lisboa. Com suas ruas estreitas e vibrante vida noturna, permanece no radar de todos os notívagos que consultam os guias da cidade. Mas a situação alterou-se radicalmente. E não foi para melhor.
Quem o diz é a presidente da Junta de Freguesia da Misericórdia, Carla Madeira. Em entrevista ao “Olhares de Lisboa”, a autarca explica que o problema tem-se agudizado nos últimos anos, após a pandemia, em que a atividade comercial se acentuou em zonas como o Cais do Sodré ou o Bairro Alto. “Antes da pandemia, havia um caminho, na direção certa, que estava a ser trilhado. Desse caminho fez parte, por exemplo, o regulamento de horários dos estabelecimentos, formalizado em 2016. Mas agora tudo voltou para trás”.
“Romantismo boémio” esvaneceu-se
A autarca considera que a Misericórdia esteve, desde sempre, associada a um certo “romantismo da vida boémia”, em que os lisboetas procuravam estes bairros para descontrair ou simplesmente “beber um copo”, mas hoje esse quadro mudou radicalmente. “Já quase nenhum português frequenta o Bairro Alto por medo da insegurança e da confusão que aqui se vive”.
Para Carla Madeira, “o ruído excessivo está diretamente associado ao crescimento descontrolado de estabelecimentos dedicados ao comércio de bebidas low-cost, que funcionam de portas abertas para além do horário permitido (em alguns casos, utilizando o espaço que é de todos como extensão do seu negócio). Num espaço onde cabem 20 pessoas, temos mais 100 à porta. E isto é intolerável”.
Falta fiscalização e ação
A autarca sublinha que as preocupações sobre a insegurança e a falta de policiamento durante a noite da Freguesia, uma área que atrai milhares de turistas e ainda é o lar de muitos moradores, estão diretamente ligadas “pela falta de fiscalização por parte da Câmara Municipal de Lisboa e das entidades por ela tuteladas, que só nos últimos dois anos e meio, permitiu a abertura de mais de uma centena de estabelecimentos (provavelmente ilegais, face às normas em vigor)”, já que o Plano de Urbanização do Núcleo Histórico do Bairro Alto e Bica define um limite (já atingido) para o número de bares que podem operar em toda esta zona.
Além do ruído, as ruas da Freguesia converteram-se em “lixeiras” a céu aberto, devido à “grande quantidade de copos de plástico e lixo” produzida pelos consumidores.
Carla Madeira afirma ter abordado o assunto por diversas vezes junto do atual Executivo da Câmara Municipal de Lisboa, mas “nada tem feito” para inverter este “verdadeiro inferno” em que os moradores estão condenados a viver.
Segundo a autarca, a Misericórdia perdeu o seu “espírito comunitário” de outrora. “Alguns moradores tentam chamar à razão os donos desses bares, alegando que têm crianças em casa, que precisam de descansar. Mas os proprietários ignoram completamente os problemas de quem vive nos bairros e respondem que ‘têm de trabalhar’. Esta situação não pode continuar”, sublinha.
Carla Madeira sustenta que a Junta “não quer fechar bares”, mas pretende que a Freguesia tenha uma economia noturna “saudável e responsável”, que não prejudique a qualidade de vida dos moradores. A autarca defende que a noite no seu território “está completamente desregrada” e já galgou, por muito, a imagem de se ter transformado “num enorme parque temático para turistas”. Hoje, “é um verdadeiro caos, um inferno, a céu aberto”.
Cais do Sodré “é um local muitíssimo perigoso”
A situação do Cais do Sodré há muito que pisou a linha vermelha, diz Carla Madeira. As ruas são ocupadas por “centenas, milhares de pessoas”, emitindo um “ruído infernal” que impossibilitam o descanso dos moradores.
“Todas as noites temos uma espécie de ‘botellon’, com magotes de jovens nas ruas; em que se veem traficantes de droga a circular livremente entre as pessoas. Já se registaram situações de grande violência, com agressões gravíssimas, violações de jovens”.
“Circulam por lá as novas drogas sintéticas, que as pessoas tomam e perdem o controle de si próprias. Acordam de manhã, sem saber o que lhes aconteceu, mas dão-se conta que foram estupradas ou roubadas. O Cais do Sodré atual nada tem a ver com a zona de animação noturna antiga, que foi o ponto de encontro de muitos jovens. Ainda me lembro de ir dançar ao Jamaica ou ao Tóquio. Era tranquilo irmos para lá divertirmo-nos. Hoje, o Cais do Sodré é um local muitíssimo perigoso”, anota.
Perante o quadro apresentado, a autarca defende várias medidas urgentes de mitigação dos problemas e um reforço de fiscalização, que ponham cobro aos abusos que todas as noites ocorrem da Freguesia.
“Não basta que a Polícia Municipal passe as contraordenações a quem não cumpre a lei. Esses comerciantes fazem contas e descobrem rapidamente que os lucros gerados pelas infrações são muito superiores às contraordenações. Nós sabemos que essa medida é claramente insuficiente, até porque não há consequências”.
Castigos de três meses
Carla Madeira lembra que, no tempo em que Fernando Medina era presidente de Câmara, as autoridades punham de “castigo” os bares que não cumpriam a legislação. “Se alguém reincidisse, era obrigado a fechar o estabelecimento às 23h durante três meses. Se persistissem na provocação, o bar era fechado definitivamente”.
Na visão da autarca, já vai sendo hora de a Câmara de Lisboa “fazer o seu papel”, endurecendo a fiscalização, até porque o Município “tem ao seu dispor todos os meios legais para acabar com este clima de impunidade total de quem não cumpre a lei”, mas “tem-se posto à margem deste grave problema social que afeta as pessoas que vivem na Freguesia”.
Carla Madeira explica ainda as medidas levadas a cabo pelo Município de Lisboa num passado recente, eram tidas como “exemplares” a nível nacional. E conta que uma delegação da cidade do Porto “chegou a deslocar-se à cidade para observar aquilo que estava a ser feito na capital para proteger os moradores do ruído e da barafunda da noite. As pessoas da Câmara do Porto não só implementaram as nossas medidas, como foram mais longe e obrigaram a fechar esplanadas à noite em zonas históricas para proteger os moradores”
Em Lisboa, “houve um retrocesso. A lei não só não está a ser cumprida, como se regrediu no processo de licenciamento selvagem de novos bares, que não contribuem em nada para a dignificação da atividade. São negócios que vendem copos, de forma indiscriminada, tão só, e prejudicam todos aqueles que têm o direito legal ao descanso”.
Despejos pioraram a segurança do Bairro Alto
A chamada “Lei Cristas”, que liberalizou as rendas de habitação e o preço das casas, atirou centenas de pessoas para o “meio da rua”. Em zonas como o Bairro Alto, diz a autarca, dezenas de famílias “foram obrigadas a deixar as casas onde tinham nascido e criado as suas famílias”.
Segundo a autarca, o gabinete jurídico da Junta de Freguesia da Misericórdia “atendeu dezenas de pessoas” evitando que “fossem expulsas das suas casas”, mas houve “muitas que não conseguimos salvar”.
“Tivemos situações sociais complicadíssimas. Famílias inteiras que foram despejadas e ficaram sem teto (e sem chão), porque tinham vivido aqui toda a vida e entraram em desespero por terem sido obrigadas a abandonar as suas casas, o bairro que as viu nascer”.
Segundo a presidente de Junta, foi também este fator que contribuiu para “piorar consideravelmente” a vida na Freguesia.
“Os bairros, sem as pessoas que lá viveram a vida toda, ficam vazios de vida. Esses moradores tinham um código de conduta e espírito de comunidade. Eram eles os protetores dos bairros. Hoje, essas mesmas ruas transformaram-se em guetos muito pouco recomendáveis”, conclui.
Protestos de cidadãos
Na semana passada, um grupo alargado de moradores de toda a cidade reuniu para lutar contra a falta de medidas da Câmara de Lisboa em mitigar os problemas do consumo de álcool nas ruas, de ruído, vandalismo.
Carla Madeira foi convida pela designada Plataforma Lisboa para participar na reunião. A autarca explica que “é totalmente solidária” com os protestos deste movimento de cidadania, mas anota que “há muito que a Junta de Freguesia da Misericórdia” vem denunciando a “falta de medidas do Executivo de Carlos Moedas”, a quem pede “medidas concretas e urgentes” para “acabar com a impunidade na noite lisboeta”.
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