Os Mercados e as Feiras constituem um “formato” comercial específico e singular no contexto e na realidade do nosso comércio, vincando de forma muito própria o setor do retalho.
Um dos aliciantes, quando se escreve sobre Comércio, em geral, é a possibilidade de explorar um mundo tão rico e diverso que, abordando a vivência quotidiana das populações, deixa sempre em aberto novos e renovados temas de discussão.
Desta forma, optei por focar uma “tipologia” (será abusivo denominá-la de formato?) comercial que, pelas suas especificidades, nos ajudará também a compreender melhor algumas das facetas do Comércio dos nossos dias, revelando-nos razões da procura que a própria razão desconhece (…) ou talvez não!
Remontam aos finais do século XI algumas referências a Mercados, sendo de finais do século XII as primeiras Feiras que tinham lugar junto aos Castelos e/ou Mosteiros Fortificados. Por motivos que a História já nos deu a conhecer seriam estes os locais mais propícios para a realização de Mercados e Feiras, podendo-se apontar duas ordens de razões plausíveis. Por um lado, tratava-se de um local privilegiado de encontro das populações (fosse residente ou forasteira) e, por outro, seria talvez o local mais seguro para efetuar as transações, dada a sua “centralidade”.
O que é facto, e apesar de ser comum encontrar referências menos abonatórias em relação às Feiras locais, consideradas obsoletas já por volta dos finais do século XVI, perdendo o protagonismo para Mercados que pressupunham “maior organização e controlo”, as ditas Feiras desempenhavam um papel de relevo na atividade comercial.
Curioso parece ser o facto, de hoje, passado todo este tempo (e refiro-me a algumas centenas de anos!) tal constatação parecer estranhamente atual. Isto é, pelas razões que explanarei, os Mercados e as Feiras continuam hoje a atrair e gerar fluxos significativos, assumindo um protagonismo próprio no contexto da oferta comercial, isto apesar da esmagadora maioria das pessoas que os frequenta, lhes apontar carências de diversa ordem.
Quer se trate de um contexto mais ou menos urbano, mais ou menos rural, os Mercados e/ou as Feiras ocupam um espaço muito próprio, estando tal facto bem patente na importância que continuam a deter ao nível da oferta comercial instalada. Poucos serão os casos de extinção de Mercados ou Feiras, por razões relacionadas com o aumento da intensidade concorrencial por via do aparecimento de novos formatos mais modernos e atrativos.
Numa vertente mais sociológica do que propriamente económica, se é que neste caso é viável tal separação, as Feiras e os Mercados são realizações com muitas décadas de existência, estando de tal forma enraizadas nos usos e costumes das populações locais, que dificilmente poderão ser extintas e/ou “preteridas”.
Contudo, poder-se-ia argumentar que tal realidade é mais evidente nos meios, ditos, rurais, no entanto, depressa constatamos que não são tão raros quanto isso os eventos que têm lugar nos grandes centros urbanos ou nas suas proximidades.
Naturalmente que em muitas situações, esses certames realizam-se em áreas urbanas centrais, muitas das vezes, zonas históricas por excelência, criando inúmeros problemas relacionados com a circulação de pessoas e automóveis, estacionamento, degradação da qualidade ambiental (poluição visual e sonora), necessidade de limpeza da via pública pós-realização dos eventos, questões de segurança, etc.
A importância incontornável que detêm na vida local, está por isso bem patente no facto de quase sempre ocuparem essas zonas nobres, principal artéria e/ou núcleo urbano central das localidades, originando assim entraves e dificuldades de diversa ordem.
Fazendo acrescer consideravelmente o número de pessoas que aí se deslocam pela realização da Feira, um dos fatores mais marcantes reside no facto de reforçar de forma mais intensa os laços de solidariedade e, até mesmo, de coesão, no mínimo, entre as populações das diferentes Freguesias, dos distintos Concelhos (…), sendo tal fenómeno bem evidente nas comunidades de caraterísticas mais rurais. Muitas das vezes o efeito de atração exercido extravasa o limite concelhio, não sendo pouco provável poder encontrar pessoas oriundas de outros Concelhos como visitantes/ clientes habituais e fiéis, não tanto à oferta comercial em si, mas mais ao próprio evento.
Pelas razões aludidas verifica-se, por parte das Autarquias, alguma preocupação com a revitalização dos seus Mercados e/ou Feiras, dotando, por vezes, os espaços públicos, periodicamente ocupados por tais certames de condições mínimas para a sua realização (água e eletricidade, sanitários públicos, pavimentação, higiene e limpeza, estacionamento, entre outras possíveis de enumerar).
Por outro lado, constata-se que, e apesar dos esforços, mais ou menos conseguidos, no sentido de fazer com que os locais de realização sejam cada vez mais periféricos, em relação aos núcleos urbanos, constituem situações problemáticas que impõem decisões nem sempre bem aceites pelas diferentes partes envolvidas.
É certo que as Câmaras Municipais chamaram até si, por força das circunstâncias, algumas responsabilidades e competências no que diz respeito à “manutenção do espaço” (limpeza, principalmente) já que, apercebendo-se dos fluxos gerados por essas realizações, verificaram que a animação comercial gerada poderia e deveria ser aproveitada para outras realizações locais, divulgando e promovendo o seu município junto dos visitantes.
Obviamente que o desenvolvimento dos núcleos urbanos, o crescimento populacional e a taxa de motorização, são apenas alguns dos fatores que têm contribuído para que os locais de realização de tais certames se venham a “deslocalizar” para áreas consideradas periféricas, o que acaba por merecer, mais tarde ou mais cedo, a concordância de todos, tendo em conta a própria procura permanente de uma maior e melhor qualidade de vida das populações.
Trata-se, no entanto, de um processo que exige uma abordagem e condução muito prudentes, concertando interesses e conciliando vontades.
Para as Câmaras Municipais, os Mercados e as Feiras têm suscitado um conjunto de situações, mais ou menos polémicas, requerendo atuações coordenadas que se poderão ou não justificar consoante os casos com que efetivamente se deparam.
Sendo um elemento urbano de grande visibilidade, face à localização estratégica na mancha urbana, as intervenções que incidam sobre os Mercados geram impactos consideráveis a vários níveis.
Outra questão suscetível de reflexão relaciona-se com um facto, que apesar de ser sentido com maior intensidade em meios marcadamente rurais, terá também efeitos nas considerações a tecer sobre esta temática, ou seja, os Mercados e as Feiras são encarados como uma forte concorrência ao Comércio Retalhista instalado.
O fulcro da questão, e sobretudo nos meios rurais é notório, é que assumindo uma importância extraordinária, e reconhecida também pelos residentes, não só em termos da diversidade e complementaridade da oferta, desempenham ainda um papel sociocultural, dificilmente dispensável pelas populações locais.
Sendo conhecidos os dias da sua realização (“Dia de Feira”, “Dia de Mercado Franco”, etc.…), e face à sua periodicidade, o hábito adquirido ao longo de muitos e muitos anos, inclusive de geração em geração, não se perderá com facilidade, seja qual for a evolução que se venha a verificar ao nível dos formatos comerciais já instalados ou a instalar num futuro, mais ou menos, próximo.
Essa periodicidade não é obra do acaso, mas mais um reflexo das necessidades sentidas pelos consumidores locais.
Decerto que aquando do aparecimento das médias e grandes superfícies, se sentiu que parte da procura se desviou, mas o seu carácter excecional ao nível da própria riqueza da oferta comercial (a origem dos produtos, a negociação dos preços, o convívio, a encomenda, etc.) tem conferido aos Mercados/Feiras um estatuto incomparável.
Será interessante distinguir algumas situações ao nível do tipo de oferta que se pode encontrar nestes “formatos” de comércio. Isto é, os Mercados e as Feiras disponibilizam uma oferta, protagonizada tanto pelos habituais vendedores ambulantes que cumprem um itinerário que vai muito além de um contexto regional (distrital, por exemplo), como também pelos produtores locais que encontram aí uma forma, na maior parte dos casos, a única, de escoar os seus produtos, agrícolas essencialmente.
Concretamente, a realização da Feira ou do Mercado, semanal que seja, provocando reações adversas por parte dos comerciantes locais com estabelecimento nas proximidades, gera fluxos que implicam que em muitas das situações, tais comerciantes acabam por faturar mais no dia da Feira, do que nos restantes dias da semana.
Tal constatação será extensível a todos os outros Serviços que compõem a oferta “comercial” do Centro/Baixa dessas localidades. É o dia escolhido para tratar de negócios e assuntos diversos na Câmara Municipal, no Banco, nos Correios, nas Finanças, enfim, é o dia em que a localidade realmente “mexe”.
Soluções que passem pela “transferência” das Feiras /Mercados para recintos fechados, dotados de outras condições e sujeitos a regulamentação específica mais rígida, acabarão por inviabilizar a sua realização. Sendo, quiçá, a via mais correta encontra à partida entraves de tal ordem que se acaba por revelar tarefa demasiado ingrata.
A localização é um dos seus principais pontos fortes, sendo que à medida que se vai afastando para a periferia os clientes vão ficando, também, pelo caminho. O espaço aberto confere-lhe uma vida comercial e social única, impraticável em espaços/recintos fechados.
Os habituais comerciantes, dado o leque de opções de que dispõem na sua “região de intervenção” podem certamente preferir ou preterir consoante a maior ou menor clientela.
Se a postura e a atitude individualista são apontadas como características do comerciante local, dito tradicional, o que dizer do comerciante/ feirante que monta a sua tenda pela manhã, pratica o seu negócio da melhor forma que pode e sabe, desmonta a tenda e parte para uma outra paragem, voltando à mesma rotina, 10 ou 100 km depois, no dia ou na semana seguinte. Será quase impensável impor algum tipo mais rígido de organização ou associação, estipulando deveres, responsabilizando, concertando, etc.
Obviamente que existem, a nível dos Mercados e das Feiras, diferenças e particularidades que marcam definitivamente a forma e os meios subjacentes a um eventual processo de reabilitação, reconversão, deslocalização, extinção, etc., que se entenda por necessário, daí que essa diversidade de casos imponha uma análise cuidada de cada caso, determinando efetivamente se será ou não viável este ou aquele Mercado, esta ou aquela Feira.
Trata-se de uma tipologia comercial que fará sentido, pelo menos a sua longevidade assim o diz, tal e qual existe, tal e qual funciona, correndo-se o risco de “se perder pela modernização!”.
Pelas suas caraterísticas peculiares, os Mercados e as Feiras constituem um “formato” comercial específico e singular no contexto e na realidade do nosso Comércio, vincando de forma muito própria o setor do retalho. Difícil parece ser conseguir encontrar justificações fundamentadas para a preferência que tal tipologia consegue granjear por parte de muitas e muitas pessoas, numa época marcada pelos crescentes níveis de exigência e qualidade.
A procura terá, ainda hoje, razões que a razão desconhece!
(in “Comércio(s)! A que propósito? Conversas (Im)prováveis com Fernando Pessoa”, 2016, Barreta, J.)
Por: João Barreta – antigo Diretor Municipal das Atividades Económicas da Câmara Municipal de Lisboa