A Baixa como zona nobre do Comércio – uma visão quase “Queirosiana”!
Era na Baixa, representava-se uma peça com um cenário pontuado de edifícios monumentais, altivos pela História que transbordavam e de uma beleza memorável.
O silêncio dominante era, paulatinamente, abafado pelo som das carruagens, raros automóveis e saudosos pregões, concertando tal conjunto uma musicalidade que traçava o ritmo de um quotidiano sem grande sobressalto.
Pura ilusão, a luminosidade emanada de um céu puro que é tão nosso e só Lisboa tem, trazia agora, o burburinho social que faz vibrar as épocas.
As pessoas fervilham denunciando a sua pertença, pela postura, pelo trajar, pelo compasso do próprio passo, percorrendo com distinção a rua, apreciando e concedendo largos minutos do seu tempo e a sua preferência a uma oferta rica e vasta que fazia girar a sociedade de então.
As montras soberbas pelos apelos do exposto fazem abrandar a marcha dos que elegiam o local para passeio ou simples passagem. A vista deambula e aguça sentidos e sentimentos, o fervor de admirar, tocar, comprar, ofertar, consumir.
Tudo desaguava na dita rua, o teatro, o banco, o restaurante, o café, as artes, os ofícios, os serviços públicos, numa palavra o Comércio e a sua vida. O Tejo limpo verde-azul luminoso, sempre presente, também constitui força de vida e motivo de atração.
A Baixa é a vida da Cidade. O Comércio é a vida da Baixa. A Baixa e o Comércio, uma vida a dois, com tempos e tempo próprio.
Os tempos, que também lá se podiam fazer, eram bem diferentes. Se melhores, se piores, só as vontades os poderiam, tragicamente, mudar!
O Comércio da Baixa como marca de prestígio
Depois a Baixa deu-se a conhecer, ficou conhecida, tornou-se reconhecida, fez-se moda, expandiu-se e outros polos de Comércio foram surgindo, pontualmente, pela Cidade, no entanto, a Baixa continuava a brilhar como a estrela maior do Comércio, onde se podia encontrar todo e qualquer produto, bem ou serviço.
A concorrência que emergia era sinal do crescimento da Cidade e, pasme-se, da sua população residente. Comerciar era motivo de honradez, orgulho e labuta diária. A Baixa em alta, sem margem para dúvidas!
Ser comerciante na Baixa era já por si uma marca de prestígio. Não era comerciante quem queria, mas apenas quem podia e sabia da coisa. O orgulho com que se estava atrás do balcão, se tratava o cliente pelo nome e já quase se adivinhava ao que vinha, era uma característica bem peculiar do Comércio, e que fazia com que o mesmo fosse único, quiçá inigualável.
O respeitável cidadão, acompanhado da família, ia ao estabelecimento do Senhor Garcia, do Senhor Pereira ou do Senhor Ferreira, sendo visível uma relação estreita entre as partes. Ir à loja era quase visita habitual, de casa, entre velhos conhecidos, talvez amigos.
O cliente era um (…) amigo e, por isso (ou para isso) tratado como tal.
O cliente conquistava-se, o amigo perdurava.
A toponímia continuava a fazer sentido e era de todos compreendido o porquê da Rua dos Douradores, da Rua dos Correeiros ou da Rua dos Fanqueiros assim se apelidarem.
Era o Comércio que ditava regras, não sendo com toda a certeza por falta de personalidades da época, de efemérides ou de datas “marcantes” que as ruas não recebiam outro (s) nome (s) de (…) batismo.
As pessoas vinham de perto, de longe, de muito longe, para fazer as suas compras na Baixa, pois para além do facto de a Baixa ser o Centro Comercial da moda, aí se podia encontrar praticamente de tudo.
Embora pontificassem ramos de Comércio, como a Ourivesaria ou o Vestuário, por exemplo, o difícil era não encontrar o que se procurava – o Sapateiro, o Barbeiro, o Engraxador, a Modista, o Relojoeiro, a Ajuntadeira, mas também as ferragens, os materiais de construção, os serviços de reparação, quiçá uma oficina de automóveis ou pelo menos a venda de peças e acessórios, entre outros.
As ruas tinham a vida que o Comércio lhes proporcionava, embora o “alfacinha” já não fosse a língua oficial que se falava na Baixa.
Por sua vez, o turista fazia mesmo questão de conhecer a Baixa e as suas ofertas, fazendo tal visita parte dos roteiros, como um dos pontos de interesse a não perder.
Aliado à oferta comercial, que também se ia adaptando, paulatinamente, a esse tipo de clientela, uma mais valia era o património, rico e cuidado, ali existente, ao nível do edificado e não só.
Os cheiros do Comércio misturavam-se com os aromas do Turismo e com as fragrâncias da Cultura, mas o resultado da combinação era agradável, apresentando uma química própria e cativante.
A expressão “É como ir a Roma e não ver o Papa” encontrava decerto paralelo em “(…) ir a Lisboa e não visitar a Baixa”. A razão da visita eram, afinal de contas, (…) as razões do Comércio, do Turismo e da Cultura, quase … Religião!
A Baixa em baixa ou a necessidade de resposta a “novos” desafios!
O Comércio passou a ser feito de outra matéria, já não se faz tempo, ninguém o consegue fazer, é também um bem escasso. A compra passou, para muitos, a sacrifício, para mal dos pecados de quem faz do Comércio a sua vida e a de todos os seus.
A principal referência da loja passou a ser a marca ou marcas que comercializa, mais do que o nome do comerciante como outrora acontecia.
Essas lojas, sem nome, mas de renome, representantes das marcas que marcam a vivência dos mais jovens (e não só!), passaram, muitas das vezes, a servir para identificação das próprias ruas.
A rua à qual uma arte ou ofício já deu nome, passa a ser conhecida por nela estar alojada uma marca que de alfacinha ou lusa já pouco ou nada terá.
A calmaria que muitos admiravam já parece ser incompatível com o ritmo dos nossos dias, daí ter caído em franco e preocupante desuso o atendimento personalizado que podia fazer do Comércio de ontem o Comércio de amanhã.
Mas, também, as caras por detrás do balcão já não são duradouras e acolhedoras como no passado, por vezes já não inspiram a confiança de se lhes poder pedir um conselho, uma opinião credível ou conceder-lhes o benefício da dúvida por via de mero e simples desabafo da vida pessoal.
O cliente era amigo, porque encontrava reciprocidade do outro lado do balcão. Tal balcão não era barreira intransponível, era sinal de respeito, de reconhecimento, de honorabilidade.
Responder aos desafios de hoje, sem retirar ensinamentos da experiência passada é pura e simplesmente condenar o Comércio e limitá-lo àquilo que são hoje os Centros Comerciais. Os tais Centros Comerciais, que faça chuva ou faça sol, parecem estar apinhados de gente que tem sempre, mesmo que o não tenha, algo que comprar.
As razões são várias, a razão pouco consistente e a razoabilidade inexistente, mas por este caminho vai-se “vendendo” a ideia de que são os Comerciantes (com C maiúsculo) a aprender com aquilo que se faz nos Centros Comerciais.
Ora, radicalizando “a coisa”, nos Centros Comerciais não há Comércio, há consumo. De Comércio sabem os Comerciantes (mas, os tais de que tenho vindo a escrever em linhas anteriores desta “história”!).
Aproveitemos enquanto ainda vamos tendo testemunhos vivos do Comércio da Baixa, para que não se diga que a Baixa só terá de aprender com os Centros (…) de Consumo. E estes terão aprendido com quem?
Opinião: Por João Barreta
Ex-Diretor Municipal das Atividades Económicas da Câmara Municipal de Lisboa
Autor do livro “Comércio(s)! A que propósito? Conversas (im)prováveis com Fernando Pessoa”
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