“Eu sou a miúda do Intendente!”

Nas marchas, deseja é “que todos fiquem bem, que façam boa figura. Sofro por todos, torço por todos, gosto muito das marchas, estou metida nelas desde criança”.

Mercados 2007

“Eu sou a miúda do Intendente!”, responde Anita Guerreiro, 80 anos, a quem pede que lhe contem a história da sua vida.

Nasceu em frente ao Hospital do Desterro e foi logo poucos anos depois, na escola primária da época de Salazar, que se revelaram os seus talentos. Na época, era obrigatório, para todos os alunos, cantar o hino nacional. Foi por causa disso que se tornou “a vocalista da escola”.

A seguir, começou a cantar – aos sete anos – no Sport Clube do Intendente. Aos 16 era a vedeta dos espectáculos de revista da colectividade. Uma vizinha desafiou-a a ir ao espectáculo O Comboio das seis e meia”, no Politeama.

José Castelo, Marques Vidal e o maestro mandaram-na cantar várias músicas e perguntaram-lhe se gostava de o fazer e se queria mesmo ser atista, ao que ela respondeu, claro, que “sim”.

“Era para concorrer nas audições da quinta-feira seguinte, mas acabei por me estrear no dia em que era para concorrer”. Logo a seguir, o programa, que era publicitário, teve que encerrar, por ordem governamental, junto com todos os outros do mesmo género.

Mercados 2010

Havia a hipótese de ir em digressão para o Algarve, só que Anita era jovem e o pai não queria. Tony de Matos e a sua mulher ofereceram-se para tomar conta da menina, e o cantor propôs-se apoiá-la como um segundo pai. “Foi isso mesmo que ele foi”, conta.

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Mais tarde foi para o teatro Maria Vitória, para a revista Oh Zé Aperta o Laço, com Irene Isidro, António Silva, Teresa Gomes e Barroso Lopes. Ia para cantar, mas ficou também como actriz, fazendo de ardina.

Viveu no Canadá, nos Estados Unidos e em Angola – durante a gerra colonial, actuando regularmente para os soldados portugueses que ali combatiam.

São 60 anos a cantar e a representar, e fica feliz por ser reconhecida pelo Mundo fora e em todas as províncias do país. “Lembram-se das músicas antigas. Eram muito divulgadas, passavam em todos os postos da rádio. Nem podia andar na rua. Quando estreei o Cheira a Lisboa, o público obrigou-me a cantar oito vezes seguidas”.

Mercados 2013

Agradece a  quem segue o seu percurso: “Tratam-me tão bem. Todos os dias, aqui no Faia, onde canto, aparecem famílias portuguesas, ou brasileiras, que chegam ao pé de mim a chorar, porque a mãe ou a avó se lembram sempre das minhas músicas”.

Começou a ser madrinha nas marchas em 1954. Interrompeu essa actividade quando viveu em África, mas quando voltou logo retomou.

Mais recentemente foi, durante 11 anos, madrinha da marcha dos Mercados. Quando deixou de ocupar esse lugar ficou triste e magoada. No ano passado, embora já não como madrinha – para sua tristeza – não deixou de estar presente na hora dos desfiles, na Avenida.

Quando passou a marcha dos Mercados, muita gente gritou o seu nome, embora já não fosse madrinha. Curiosamente, Carlos Malato gritou à multidão “Ela está cá, não está é aqui!”. Estava na tribuna presidencial, mas do que gostaria mesmo era de continuar a ser madrinha.

“Se alguma marcha me convidar para ser madrinha eu vou”, afirma, com entusiasmo e alegria. Afinal, antes de ser madrinha dos Mercados, também o foi do Bairro Alto, Graça, Campolide, Campo de Ourique, Lumiar… Até perdeu a conta.

Independentemente de alguém a convidar para ser madrinha, o que deseja é “que todos fiquem bem, que façam boa figura. Eu sofro por todos, torço por todos, gosto muito das marchas, estou metida nelas desde criança”.

Mercados 2014

Nesses tempos em que era miúda, gostava do seu bairro do Intendente. “Mesmo com a prostituição que existia, havia respeito entre as pessoas. Nunca vi nenhuma prostituta tratar mal ninguém. Elas acudiam pelas pessoas do bairro quando era preciso”.

Agora, Anita nem vai lá. “A minha travessa, a escola, os cinemas… Está tudo fechado. Eu era uma miúda dali, gostava do bairro”.

Alguém que também tem memórias dessa mesma época é o seu grande amigo Ruy de Carvalho, que quase sempre a acompanhou nas andanças das marchas. Anita tem uma amizade forte “pelo Ruy, pelo filho, pela filha. Por toda a família. É uma família muito querida”.

Não é fácil igualar padrinhos assim, tão prestigiados e tão humanos.

Uma fadista agradecida

Quando fala de afectos, Anita Guerreiro lembra-se logo de Hermínia Silva: “A minha madrinha de fado”.

Muitas décadas depois desse apadrinhamento artístico, Anita é a fadista residente do Faia, no Bairro Alto, há 23 anos.

Diz que nem que a cobrissem de ouro, diamantes e esmeraldas de lá sairia. “Eu sou uma pessoa muito reconhecida. O meu marido, até morrer, sofreu de Alzheimer durante sete anos. E esteve sempre comigo aqui, durante os espectáculos. O filho do proprietário, que é o senhor António Ramos, dizia-lhe com carinho, quando ele cuspia: ‘Cospe, careca, cospe que eu limpo’”.

Viu a família do proprietário do restaurante abraçada, a chorar na Igreja, quando o marido partiu. E não se esqueceu.

O marido era Pepe Cardinali, um grande ilusionista do Circo Cardinali. Razão pela qual, assim que chegaram de Angola, continuaram ambos a trabalhar sem interrupções. E a protagonizar uma vida em comum que a cantora recorda com amor, carinho e saudade.

Porque gostava ela tanto da marcha dos Mercados?

Grande senhora do fado, das memórias e das marchas, Anita Guerreiro diz que não torce por nenhum dos desfiles, mais do que pelos outros. Deseja que ganhe o melhor, porque sabe que todos se esforçam e dão o melhor que têm.

O facto de as marchas trabalharem tanto e a vitória ser só para alguns custa-lhe um pouco… Mas era disso que gostava na dos Mercados. Não estava nem está a concurso, por isso nunca poderia ser vítima de injustiças.

Anita, uma figura indissociável da história das marchas, recorda que a canção Cheira a Lisboa foi uma criação sua, com música do maestro Carlos Dias e letra de César Oliveira. Quando a estrou no teatro de revista, o público não  deixava sair, exigindo sempre mais repetições.

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