O pequeno bairro da Bica, na freguesia da Misericórdia, está a perder a sua identidade, consideram os poucos moradores locais que ainda residem neste bairro. Depois do encerramento do Marítimo Lisboa Clube, do Zip-Zip e, em breve, do Vai Tu, os moradores perderam os poucos sítios que tinham para conviver uns com os outros. Olhares de Lisboa esteve no bairro e constatou a sua realidade, onde os turistas e as placas de Alojamento Local são uma presença constante.
É na Calçada da Bica Grande que o Olhares de Lisboa encontrou Leonor Oliveira, residente na Bica há 74 anos, desde que nasceu. É das poucas habitantes portuguesas que ainda vivem na Bica, completamente dominada pela presença de turistas e residentes estrangeiros. “Ainda existem alguns portugueses aqui a morar”, diz Leonor, a partir da sua varanda. No entanto, reconhece que o bairro já não tem nada a ver com aquilo que conheceu quando era mais nova.
A mesma ideia é partilhada por José Oliveira. “Hoje é um bairro com muita tristeza, vejo as pessoas a desaparecer, porque correm com a gente”, lamenta. José Oliveira, ou ‘Zé’ para os vizinhos, também mora na Calçada da Bica Grande e era frequentador assíduo do Marítimo Lisboa Clube. “Foi como se nos tirassem a nossa segunda casa. Vinha aqui desde miúdo”. Apesar de ser natural do Bairro Alto, José Oliveira mora há muitos anos na Bica e, todos os anos, ajuda a organizar o arraial, promovido pelo Marítimo Lisboa Clube.
No entanto, quando se fala nas Marchas, José não consegue escolher uma preferida. “Fui marchante durante cinco anos na Bica, estive 15 no Bairro Alto, três na Graça e 10 na Madragoa”, acrescenta, recordando o último ano em que desceu a Avenida, em 2019, com a Marcha da Madragoa, vencedora em 2022. “Foi só eu sair, que ganharam logo! Já aqui na Bica foi igual”, brinca José Oliveira.
Marítimo Lisboa Clube sem sede
No entanto, a especulação imobiliária não afetou apenas as famílias. Também as coletividades, como por exemplo o Marítimo Lisboa Clube, que organiza todos os anos a marcha e o arraial, também se viu obrigada a encerrar portas.
“O espaço foi vendido e tivemos que sair”, explica ao Olhares de Lisboa o presidente do Marítimo Lisboa Clube, Américo Silva. Para já, ainda não existem alternativas para acolher a sede do clube, mas “estamos a tentar, por todos os meios, arranjar uma solução”, acrescenta o responsável.
Para Américo Silva, o Marítimo Lisboa Clube é importante não só para a marcha e para o arraial, mas também para promover o convívio entre os moradores da Bica. “Erámos um ponto de encontro para as pessoas do bairro. Elas vinham aqui beber o seu café ou ver um jogo de futebol, tudo isso é importante”, acrescenta.
Para além da Marcha e do Arraial, o Marítimo Lisboa Clube também promove futebol de salão. O clube tem 30 sócios e 11 pessoas nos órgãos sociais, e sobrevive graças à verba que vem das quotizações e do apoio que a Câmara de Lisboa dá às coletividades para organizarem as marchas.
No entender do presidente do clube, estes apoios são insuficientes e apela à autarquia e “às entidades competentes” mais apoios para as coletividades da cidade. Américo Silva mora na Bica e é com “grande tristeza” que vê desaparecerem as tradições do bairro. No entanto, assegura que “a Marcha da Bica não pode morrer”, porque é das poucas coisas que “dá identidade a esta zona”.
“Hoje só se fala estrangeiro no bairro e, qualquer dia, se calhar, aprende-se a falar português”, ironiza o presidente do Marítimo Lisboa Clube, que considera que o clube acaba por ser também “um elo de ligação com as pessoas” do bairro, bem como “um centro de formação que ajuda a tirar as pessoas da droga e da prostituição”. Com o seu encerramento, Américo Silva acredita que “não é só o Marítimo que perde. Perde a freguesia e perde a cidade”.
A Bica de Fernando Duarte
“A Bica está a perder a sua identidade e é uma tristeza”, lamenta Pedro Duarte, bicaense de gema e coordenador da Marcha da Bica. Pedro conversa com o Olhares de Lisboa junto a um mural que faz referência ao bairro e no qual vêm alguns nomes importantes desta marcha, um dos quais o seu pai, Fernando Duarte, falecido em 2018.
A especulação imobiliária está a obrigar grande parte dos locais a saírem da Bica. O que já se ressente na marcha, por exemplo. “Posso dizer que 80% dos marchantes da Marcha da Bica moram fora do bairro”, acrescenta.
Desertificação é tema de marcha
Pedro Duarte, que é também secretário na Junta de Freguesia da Misericórdia, explica que, “em 11 mil habitantes da freguesia, apenas três mil são portugueses”. Na sua perspetiva, “a Bica há 10 anos era muito mais feliz”, e é com tristeza que vê o bairro perder mais uma coletividade, neste caso o Marítimo Lisboa Clube, que chegou a ser presidido pelo seu pai.
“Estamos a perder identidade”, acrescenta Pedro Duarte, que para além de coordenador da Marcha da Bica, cargo que herdou do pai, chegou a ser marchante por este bairro. “Tenho uma ligação umbilical com a marcha, entrei em 2000 e em 2010 comecei a ajudar na coordenação da marcha”.
Para este ano, e sem querer revelar grandes pormenores, Pedro refere que um dos temas abordados pela Marcha da Bica será precisamente a “desertificação do bairro”. Esta marcha já ganhou o concurso sete vezes. A última vez foi precisamente há 20 anos, em 2003.
Quebrar tabus e barreiras
Segundo o coordenador, “a nossa marcha sempre quebrou tabus e barreiras”. Nesse aspeto, salienta o grande contributo do seu pai. “Ele foi um grande impulsionador das Marchas de Lisboa, teve uma visão muito à frente do seu tempo e já pensava as marchas como uma organização”, revela Pedro Duarte.
No entanto, reconhece também o mérito de outros ilustres, tais como Carlos Jorge Espanhol, Júlio Rocha, ou Luís Vicente Oliveira. Em 2019, Fernando Duarte foi homenageado com uma marcha, da autoria de Tiago Torres da Silva, intitulada ‘A Bica e a Lisboa do Fernando Duarte’.
“A ideia era fazer uma homenagem ao meu pai, sem nos importarmos com a classificação. As pessoas ficaram muito felizes, porque era uma homenagem mais que justa”, explica Pedro Duarte.
No ano passado, a Marcha da Bica apresentou o tema ‘Todas as Formas de Amor’ e ficou em 13º lugar. Os ensaios para a marcha deste ano irão começar em breve no Liceu Passos Manuel, de segunda a sexta-feira, e a marcha será novamente organizada pelo Marítimo Lisboa Clube. No entanto, e porque o clube ficou sem a sua sede, “o material está agora todo guardado num barracão na Calçada da Bica Grande”, lamenta Pedro.
Como filho do bairro, é com grande tristeza que vê o final das coletividades da Bica. “Estamos num bairro muito envelhecido, com o fecho das coletividades, estas pessoas já não têm sítio para conviver”.
O futuro do Vai Tu é incógnito
A poucos metros da antiga sede do Marítimo Lisboa Clube, encontramos um espaço com um nome peculiar. ‘Vai Tu’ podia ser a resposta a um palavrão, mas é o nome desta coletividade, que corre o risco de também fechar as suas portas. O Grupo Excursionista Vai Tu tem mais de 70 anos de história e é uma referência da Bica.
Segundo a presidente do clube, Águeda Polónio, a sede corre o risco de fechar portas, porque a coletividade não consegue fazer face custo da renda. Atualmente, o Vai Tu está a pagar 1000 euros mensais de renda, graças à boa vontade do dono do espaço, tendo já pago 1800 euros por mês.
“Na altura da Covid-19, chegámos a ter rendas em atraso. Na altura pedi o Fundo de Emergência Social (FES) à Câmara de Lisboa, que só chegou em junho de 2021. Com esse valor, pagámos as rendas em atraso e chegámos a um acordo com o senhorio, que cedeu e baixou a renda para os 1000 euros”, acrescenta a presidente do Vai Tu.
Atividades mantêm clube vivo
Neste momento, o clube está a tentar aguentar a situação até junho, que é o mês mais forte para a coletividade, devido aos Santos Populares. O Vai Tu sobrevive apenas com o dinheiro das quotas dos sócios, das receitas do bar, que são escassas, e ainda de outras atividades promovidas pelo clube, tais como os arraiais, em junho, noites de fado, entre outras.
No entanto, Águeda Polónio salienta ainda que existem alguns entraves à realização destas atividades, tais como o preço das licenças, “que são caras”, bem como a limitação de horários, o que, muitas vezes, inviabiliza a realização destes eventos.
“Há coisas que a Junta nos apoia, nomeadamente ao nível das licenças para os arraiais e para a música”, explica a presidente do Vai Tu. A mesma considera, no entanto, que o apoio é insuficiente. Na perspetiva de Águeda Polónio, foi a pandemia que agravou a situação financeira do Vai Tu, com cerca de 80 sócios, grande parte não pagantes.
“Aqueles dois anos sem arraiais foi o descalabro”, acrescenta a responsável, adiantando que, até à pandemia, a situação do Vai Tu não era muito melhor, mas ia dando para manter o espaço a funcionar. “Os arraiais, parece que não, são uma grande fonte de rendimento, e ajudava-nos a pagar a renda, até então nunca falhámos nenhum mês”.
Apoios para pagar a renda
Recentemente, a direção do Vai Tu esteve reunida com a Junta de Freguesia da Misericórdia para tentar encontrar uma solução. “Fomos pedir apoio, mas conseguir ajuda para a renda para uma entidade comercial é mais complicado”, explica Águeda Polónio.
Por isso. sugere que a solução poderia passar por um espaço que albergasse as três coletividades da Bica. A presidente do Vai Tu vai expor a situação da coletividade à Câmara de Lisboa, para tentar encontrar um espaço camarário, dentro da freguesia, onde possa instalar a sede do clube. “Para ir para um espaço de um particular, mais vale ficar onde estamos”, finaliza.
“O nosso grande problema é a renda, e em cima deste valor, temos ainda a água, a luz, os fornecedores”, acrescenta Águeda Polónio, explicando ainda que o senhorio já não consegue baixar mais o valor da renda mensal do espaço.
Por outro lado, Águeda Polónio revela que, devido à especulação imobiliária, houve muitos habitantes do bairro que tiveram de sair da Bica, o que levou à perda de frequentadores do Vai Tu. “É um número de pessoas muito reduzido”, lamenta.
Águeda Polónio mora no Bairro Alto, mas tem uma grande ligação à Bica, bairro pelo qual faz questão de marchar todos os anos. “A Bica continua a ser um bairro, mas perdeu esse cariz de bairro”, explica.
“Só em Junho é que isto tem vida, por causa dos arraiais, porque no resto do ano é só turistas e alojamentos locais”. É ainda nesta altura, que muitos dos antigos moradores se juntam na Bica, para colaborar com os arraiais e com a marcha. E, é aí que, segundo Águeda Polónio “se consegue ver um bocadinho de união”.
Caneca Bica| Olhares de Lisboa nas Marchas Populares de Lisboa 2019