BAIRRISMO E FADO MARCAM MARCHAS POPULARES

As marchas populares são uma maneira de manter a tradição e o bairrismo acessos na capital e, ao mesmo tempo, «dar uma mão» ao comércio local.Lisboa é uma cidade cheia de carisma e com uma personalidade muito própria. E dentro dela, cada bairro tem a sua personalidade própria que, este ano à semelhança de anos anteriores é «retratada» pelas marchas populares.

Nos últimos anos a cidade (e os seus habitantes) têm sofrido com um aumento gradual dos preços das casas. Mas, mesmo assim, os seus encantos não se perderam e, é essa magia, que a maioria das marchas que ontem desfilaram no Altice Arena mostraram e, nada melhor que o fado «Lisboa Bairrista» para o demonstrar: «Lisboa è sempre bairrista/Bisbilhoteira, sempre fadista/Quando na rua se mete/Tem logo sete p’ra namorar/Tem logo as Sete Colinas/Que são meninas do seu olhar»…

É nos bairros, lugares de visita obrigatória, que a Lisboa bairrista se conhece. Através da coreografia e música, as diferentes Marchas Populares, que no dia 12 desfilam na Avenida da Liberdade, convidam os lisboetas e forasteiros a conhecer os cafés de ponto de encontro, os mercados e, sempre que possível, a admirarem a beleza espelhada do rio Tejo.

Intimamente ligado às marchas populares está o fado, representativo de um património único lisboeta (classificado pela UNESCO como Património Imaterial da Humanidade). Numa viagem de descoberta contínua, o Fado aboliu fronteiras políticas e linguísticas e é o símbolo do nosso bairrismo. Criado na exiguidade de um bairro urbano, alimentado de vícios e de opressão, tornou-se num ícone musical e cultural de um povo, que se orgulha de o exibir nos palcos internacionais, como a sua canção nacional. A saudade e o Fado uniram-se para consolidarem a nossa identidade e, como disse Fernando Pessoa, o Fado «é o nada que é tudo», cuja «lenda se escorre / A entrar na realidade».

E foi precisamente o fado que a Marcha dos Mercados – a primeira a desfilar ontem no Altice Arena – decidiu eleger como tema, afiançando que «os mercados de Lisboa, onde muitos fadistas nasceram, trazem o fado no coração». E, como dizem na canção: «Maria Flor/Junto aos cravos encarnados/Escutei a sua canção/E sei agora/Que há em Lisboa, Mercados/Com fado no coração».  Mas, a Marcha do Mercado não esqueceu os típicos elétricos lisboetas e, dessa forma, canta: «Estava à cunha, o amarelo/Mesmo antes de ali passar/Mas respondendo ao apelo/Teve logo que parar».

No entanto, como a noite vai longa e os foliões precisam de matar a sede, a Marcha da Mouraria levou, ao Altice Arena, as olarias e os aguadeiros, que em tempos passados carregavam as bilhas de água de cerâmica e, por isso, a Mouraria convidou: «Vem comigo desfilar/Ó minha oleira bonita/Dá-me um braço, vem amar/…Traz o teu vestido novo/Vem arraial empolgar/Sou uma mulher do povo/Basta dançar e cantar».  O fado também esteve presente: «Oleiros de par em par/Vêm lembrar a Severa/E contar como ela era/Num fado que vão cantar».

O 60º aniversário de Campolide, que cresceu com a criação da Calçada dos Mestres e do Bairro da Serafina, foi levado à arena do Altice. A Marcha da Bela Flor homenageou o seu património, na figura do aqueduto das Águas Livres e das suas gentes, evocando os seus pátios, as suas vilas e o seu espírito bairrista e, como não poderia deixar ser, o «regressar do tilintar do Elétrico 24»: «Tantos pátios centenários/Tantas vilas e cenários/De uma revista de outrora/A mudar a toda a hora/E o vinte e quatro que passa/A tilintar a sua graça/Põe ares de coisa mundana/Na saia de uma cigana».

A Marcha de Carnide, além de apregoar que já existem arraias no coreto, cheio de pares a dançar, quis contar a história do seu bairro e apelou: «Dança comigo, Carnide/Dança comigo/Que é neste bailarico/Que o mestre ou o maçarico/Passam a noite a dançar», lembrando: «No arraial de Carnide/Fazemos com precisão/Tantas fitas e enfeites/Bandeirinhas e deleites/Nas ruas desta canção».

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«Alto lá com o Alto Pina», este é o mote da Marcha do Alto Pina que, desta forma, pretende fazer juz ao seu bairrismo e também ao amor que as suas gentes nutrem pelo bairro que, como uma Fenix renascida, tenta manter as suas tradições vivas, envolvendo-se na modernidade dos tempos que correm. Assim, e «A Volta do Alto Pina» lá foi dizendo: «Um bairro com gente/Bem fiel e crente/Do seu próprio poder/Que do Alto desceu/E depois renasceu/Com ganas de vencer».

A Marcha de Alcântara recordou que Lisboa é, provavelmente, a última das principais cidades europeias onde ainda é possível encontrar pelas ruas profissões em vias de extinção como engraxadores, cauteleiros ou amoladores. Num fiel «retrato» à profissão de amoladores – iniciada por galegos com uma roda de carroça que, impulsionada pelo pé, fazia girar a pedra de esmeril que afiava os mais diversos objetos – os marchantes cantavam: «Gira, roda gira/Como o mundo vai girando/… Que a vida vai-se amolando/… A gaita volta a tocar/… Nada agora o faz parar», porque «Há amolador à porta/De novo a voz apregoa/Roda a roda que transporta/Saudades desta Lisboa».

A Lisboa dos nossos dias, à semelhança do que sucedia num passado distante, sempre foi uma capital multi-cultural e, pelo bairro da Madragoa, onde desde sempre existiu gente de todos os tipos e credos, passaram muitas culturas que contribuíram para a sua expressão e identidade. Tendo isso em conta, a Marcha da Madragoa «recriar» o Sítio do Mocambo – local onde, até finais do sec. XIX, se concentrava um maior número de africanos que habitavam em cubatas. Assim, a Madragoa entoava, alto e bom som: «Olha a Madragoa vai tão engraçada/Baila na cubata – Desavergonhada/Veio de visita para ver o Mocambo/Vestida bonita com um belo mambo/Tirar uma rodilha em trança africana /Misturou missangas com a filigrana/Só peca numa coisa que não vai levar a mal/Não meteu o avental de tecido capulana».

A globalização e a «internacionalização cultural» da capital portuguesa vieram «à baila» com a Marcha dos Olivais que contou, através da música e coreografia, «uma história onde também o Santo António é uma figura central», pois os turistas e o pessoal de bordo chegam a Lisboa para … «ver como ela é linda na noite de Santo António». Assim: «Ao chegar e ao partir/De onde vens, p’ra onde vais/Sempre, vais e hás de vir/Do bairro dos Olivais/Diziam-se da Portela/Mas ninguém o diga mais/O aeroporto, coisa bela/É mesmo dos Olivais».

 

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