O INCÊNDIO DO CHIADO – O(S) LARGO(S) E A(S) LOJA(S)

Decorridos trinta e um anos de toda a tragédia ocorrida na zona nobre do Chiado, na sequência de um incêndio devastador, urbanística, social, cultural e comercialmente falando, talvez já vão rareando as palavras, quiçá a inspiração, para assinalar, não esquecendo, a data.

A esta distância temporal, com o afastamento julgado necessário e com a clara noção de que às gerações mais novas já não tocará tanto uma visão de causas e efeitos do acontecimento, deixo uma reflexão pessoal “menos comercial” para possível reflexão de todos, não esquecendo jamais o Chiado do Comércio e o(s) comércio(s) do Chiado.

“O Largo e a Loja” (seja no Chiado, em Lisboa ou, afinal de contas, em qualquer outra cidade ou vila do nosso Portugal).

A sua ligação tinha anos, muitos anos, tantos que já vinham de outro século.

Pairavam, no espírito de alguns, curiosos pelas vidas alheias, certas dúvidas, como se houvesse coisa mais incerta, sobre quem tinha dado o primeiro passo para tão longo e duradouro relacionamento.

Amadurecimento, experiência, solidez, confiança, por um lado, timidez, desgaste, monotonia, desconfiança, por outro, eram “títulos” de que esta relação se orgulharia, nuns dias, e se arrependeria, noutros. Dificilmente a relação pode trazer dias iguais, e acontecendo tal não augura nada de bom.

Parecia residir na cumplicidade a chave daquela relação. Um sem outro, nada eram, mas juntos eram um só, prontos a enfrentar tudo e todos.


Era assim há tanto tempo, que as evidências daquela união estavam bem à vista dos que lhe continuavam a atribuir o devido valor e o valor de uma vida em conjunto. O tempo e os seus tempos evoluíram, como é natural, mas esta relação sempre soube resistir, firmando-se no tempo, afirmando-se nos tempos.

Os tempos eram, agora, outros, o calendário e as pessoas revelavam outras vontades, protagonizavam outros acontecimentos. Noutros tempos, já idos, as necessidades pareciam não ser tão urgentes, tão eminentes, tão prementes, tão evidentes, tão presentes.

A procura talvez não se mostrasse tão exigente, parecia conformada com a oferta existente, mais rara, menos diversa, menos complexa. O comércio, esse, era fruto do seu tempo, satisfazia a procura, mas acima de tudo tinha algo que sabia que alguém lhe iria comprar. Vendia-se o pouco a muitos, quando muitos queriam, porque apenas a isso podiam ambicionar, o pouco.

Os tempos serviam de escusa para quase tudo, também não davam para mais.

A Loja, talvez a única então existente, juntava quase tudo num só espaço, sendo que o tudo não era muito, mas era o que se sabia vender-se, pois até parecia vender-se por si. Dir-se-ia que era um comércio de primeira necessidade, de proximidade, tradicional naquilo que a tradição tem de real, de valor, de ideal, de uso, de costume, de coração, de … tradição.

O Largo que aquela Loja parece ter escolhido para uma relação a dois, duradoura, eterna, era o retrato do seu tempo, da sua época, dos seus tempos, embora na mente de alguns, talvez já poucos, ainda vagueie a ideia de que foi o Largo que escolheu a Loja para sua companhia, para uma vida a dois. Certamente há muito de conveniência nesta intimidade que se vive dia após dia, ano após ano.

Não é de hoje, mas será de sempre, os enlaces, a união de dois em um, as mais conhecidas e marcantes, são mais (re)conhecidas, pelo nome de um, pelo protagonismo de outro, pela liderança de um, pela perspicácia de outro, pelo apogeu de um, pela modéstia de outro, pelo sorriso de um, pela tristeza de outro, pelo brilho de um, pela opacidade de outro, pelo domínio de um, pela submissão de outro, sendo certo que, por tal facto, nem um nem outro se importam, assim tanto, pois os dois são, afinal de contas, um.

Apesar de inquestionável, sólida e, aparentemente, indestronável, muitos tentavam pôr a relação em causa, sem grande argumentação, diga-se de passagem. Invejas, ciúmes, rancores, ódios, enfim, de tudo se serviam para tentar, de forma inglória, quebrar o inquebrável.

Muitos até falavam do fruto dos tempos e das vontades, outros de concorrência e poucos de competição, vá-se lá querer perceber o impercetível!

O Largo já era antigo, o seu velho e gasto chão, empedrado de cor teimosamente clara, carregava nele a história e as estórias locais.

O coreto, o pelourinho e o velhinho fontanário, onde a água já corria, bem menos, faz anos, não deixavam margem para grandes dúvidas, muita da história, da tradição, dos usos e costumes das gentes locais estavam ali bem e solidamente representados.

A Loja também já não era nova, mas ainda assim não era bem vista, aos olhos de muitos, aquela diferença de tempos vividos, idades distintas tão marcadas, numa relação que, contra muitos e a todos, perdurava no tempo.

Os anos passaram pelo Largo, novos Largos surgiram, novas Praças, novas Ruas, até Avenidas, novos centros, novas vidas e novas vivências.

Pela Loja, também os anos passaram, tendo surgido novas Lojas, maiores, menores, melhores, piores, mais bonitas, mais feias, acima de tudo, e o drama era esse, menos ou mais visitadas, preferidas, “consumidas”!

Apesar da única certeza apontar para a imensa incerteza, fica-se com a certeza imensa de que o facto de diferentes gerações se referirem a ambos como “a Loja do Largo” ou “o Largo da Loja” será a prova irrefutável de que a relação passou pelo tempo e este foi dela gostando e gastando-a, mas jamais a conseguirá apagar da memória que vamos fazendo por manter, seja do(s) Largo(s), seja da(s) Loja(s)!

Autor| João Barreta (Ex-Diretor Municipal das Atividades Económicas da CML)

 

 

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